quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Discotheater

Os salões da janela impossível (excerto)

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«(..) O lugar mais evidente de uma nova socialidade» A boîte - como sítio de por ali se estar, e nisso se ter o tempo passado - pode ser reconduzida a três valores fundamentais: o fechado, a dissolução e o brilho.
«O inimaginável da boîte, confessava um noctívago notório, é a janela». Da mesma forma que se pode dizer, radicalizando, que o impensável da noite é o nascer do Sol; e por isso, como recomendava Lord Henry Wotton (O retrato de Dorian Gray), um homem de bem nunca sai de casa antes das cinco da tarde; de forma mais prosaica, há quem corra as persianas e use sempre óculos escuros.
O fechamento é produzido, em concreto, por dois movimentos. A descida, em sentido próprio - habitualmente - através de uma escada ou - em substituição - por meio do encaminhamento ao longo de um corredor, geralmente com esquinas que impeçam, durante o trajecto, a visão do ponto de chegada. A unificação do espaço, através de uma orientação centrípeta - mesmo no caso de existirem salas laterais com autonomia - relativamente à pista de dança. Concentração sublinhada pelas barreiras de luz e pelo esbatimento das paredes limítrofes.
Mais do que simulacro da noite, esboço de uma atmosfera de perversão, de que dá conta Christian Pierre-Jouan, observando - de dentro da sua experiência sadomasoquista - que a «riqueza do dentro não é apenas a da profundidade e da protecção, a de um espaço mágico, mas também a de uma certa qualidade de atmosfera de que todos os sentidos, indiferentemente, vão prosseguir a busca» (L'envers, Seuil, 1983, p.57).
A forma plena de presença em discoteca é, portanto, a presença dissoluta - na dupla acepção da palavra, bem entendido. Uma tal forma de presença é animada e balizada - em contraponto - por um dispositivo de efeitos especiais, ou seja, processos de produção de brilho. Enumeremos três métodos. O método estático, que remete para uma pose rara, normalmente associada a valores de vestuário ou make-up; o método coreográfico, assente no espectáculo da dança ou na criação de uma personagem (rábula do bêbado, do drogado, do apaixonado ou do traído); o método incidental, que reclama uma intervenção pontual mas notória - desacato físico ou, mais dificilmente, frase fulgurante.
A lógica horizontal da dissolução (descer, cair, down-town) tenderia, em limite, a produzir uma desestruturação amorfa da atmosfera - ainda que polvilhada de algum voo de purpurinas. Uma zona um bocadinho zombie da existência, na vizinhança do sono. Para exemplo, bastam algumas fotos clássicas de fim de noite em boîte ou, mais atraente, o lugar que os calmantes, paradoxalmente, disputam aos estimulantes nas preferências de não poucos noctívagos.
A relação com o tédio e o sono não chega, porém, a ser exclusiva - nem sequer dominante. Devido à omnipresença de uma lógica vertical de reanimação e revigoramento permanentes (subir, «up»), de que a música é a portadora. Passa-se, assim, da monotonia à bitonia, pela graça das virtudes binárias da música. Do ritmo, da batida ou, mais exactamente, do número de «beats» por minuto.
A disco-music «conserva a periodicidade do ritmo, o retorno regular de uma pequena matriz, mas suprime qualquer valor de progressão, de modificação insensível em direcção a um enriquecimento ou a uma modelação; afoga o tempo no espaço, o espaço de um batimento. E o seu "defeito", o seu "peso", é também o seu propósito, o nervo do empreendimento» (idem, pp.61-62).
O objectivo da presença da música não é de estímulo lírico ou sequer lúdico - na acepção suposta saudável da palavra. Não se trata de abrir janelas à imaginação ou à alegria, mas de instaurar uma regra fixa de movimento, esconjurar a sombra da imobilidade.
As formas musicais herdeiras da «disco» confirmam-lhe a função. «O que na disco, se tornara demasiado facilmente caricatural, refinou-se no funky, em que a sequência minimal e reiterada desempenha o mesmo papel que nas formas precedentes, mas é desculpada, tornada aceitável, por uma mistura, curiosa, de futurismo e negritude. Do funky desprendeu-se lateralmente [...] a cultura bastarda do rap. O rap retoma uma dimensão que a disco não soubera explorar, agrega o último resto: «a palavra» (idem, p.63). O rythm talk alarga à palavra - usada de modo imperativo; voz de comando - a lógica vertical e binária da reanimação. Constate-se a insistência na palavra up: funk you up, get on up, right on up, wake me up. Interpelação directa.

«Uma boîte é feita pelo porteiro e pelo disc-jockey», explicaram-me um dia. Warhol, por seu lado, explicava: «A chave do sucesso do Studio 54 é ditadura na porta e democracia na pista» (Exposures, Arrow, 1980, p.48).
Juiz dos olhares (to look), o porteiro franqueia a porta da descida. Juiz do fôlego, o disc-jockey impõe os dois degraus da subida. E ninguém acredita no céu.
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Alexandre Melo