sexta-feira, 13 de abril de 2012

EM NOVEMBRO TEATRO VIRIATO

Funeral do General.

S: Está tão pensativo, Senhor Merlim.

A: Já tenho idade para poder contar a minha vida. Mas como é que a conto? E para quê? Ou a vida dos outros. Para quê? Já tenho idade para fazer a minha vida. Mas como é que a faço? E quem é que faz? E para quê?

S: Estamos aqui a despedir-nos de uma pessoa humilde e arrogante, boa e má, velha e nova, um general que para servir a sua causa nunca olhou a meios, e o Senhor Merlim só é capaz de pensar em si?

A: Os funerais fazem-me pensar em mim. E os casamentos também. E os nascimentos. E o vento. E os hospitais. E as cidades.

S: Então diz-me, essa comédia que nos vais oferecer para animar o funeral é divertida? Tu até tens espírito, mas terás espírito suficiente para fazer alguma coisa… que fique?

A: Fica sempre tudo. É terrível. Nada desaparece por completo. Fica a decompor-se até à eternidade. Por etapas. Por fases. Por atos, cenas, versos e minutos. Um dia e outro dia. Categorias e géneros. O verdadeiro desafio está em fazer o que não fique. O que se esquece para sempre. Que passa e nunca mais volta. Já nem na memória. É essa a comédia que eu queria. Mas falta-me o espírito.

S: Não será técnica o que lhe falta?

A: Não é possível ser invisível. Mesmo quando morremos. Fica aqui um corpo. E as malditas histórias que inventaram para recordar o passado. Eu não quero ser nostálgico. Sou velho e não quero ser nostálgico. Mas tenho demasiadas memórias. A Guerra dos Cem Dias, a das Estrelas, do Golfo, da Secessão, do Ultramar, das Rosas, dos Mundos. Só queria a graça de produzir alguns belos versos que me provem que não sou inferior àqueles que desprezo.

S: Mas isto não é uma tragédia. Está a tornar-se insuportável. É cada vez menos divertido falar consigo.

A: É o início da terceira idade. Acabaram-se as comédias de portas e abriram-se as portas da comédia. Abre-te, comédia. E levanta-te e anda, General.

Jingle: Et resurrexit!


in Terceira Idade de J.M. Vieira Mendes