sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

1.
Pensei mais em animais.
E isso, por sua vez, levou-me a pensar nos humanos. Para ser exacto, pensei o que é que faz dos humanos…bem…humanos? O que é o comportamento humano? Por exemplo, sabemos o que é o comportamento de um cão: os cães fazem coisas de cão, correm atrás de paus, farejam rabos e põem a cabeça de fora das janelas dos carros em movimento. E sabemos como é o comportamento dos gatos: os gatos caçam ratos, esfregam-se nas nossas canelas quando têm fome e é-lhes difícil decidir se querem ou não passar a porta ou ficar dentro de casa quando os soltamos.
E que fazem exactamente os humanos que seja especificamente humano?

Pensei no assunto de outro modo. Pensei: cá está, como espécie, construímos satélites, televisão por cabo e o Ford Mustang, mas, e se tivessem sido os cães e não as pessoas a inventar essas coisas? Como é que os cães exprimiriam a sua canidade essencial através dos inventos? Pôr-se-iam a construir estações espaciais do feitio de grandes ossos em órbita terrestre? Filmariam a Lua e sentar-se-iam em drive-ins a uivar ao espectáculo?

E se tivessem sido os gatos e não os humanos a inventar a tecnologia, teriam os gatos construído arranha-céus inteiramente revestidos de alcatifas felpudas, para poderem trepar por eles? Teriam programas de televisão protagonizados por brinquedos de borracha aos guinchos?

Mas não foram outros animais que inventaram as máquinas, foram os humanos. Então, o que terá de essencial a nossa humanidade que se exprima nas nossas invenções? O que é que faz de nós nós?
Pensei como é estranho milhões de pessoas estarem vivas sem que sequer uma delas tenha a certeza do que é que torna as pessoas pessoas. As únicas actividades de que me lembrava que são dos humanos e de que não há equivalente em nenhum outro animal são o fumar, o culturismo e a escrita. Não é muito, considerando que até parece que nos achamos especiais.

2.
O tempo, filha falta tanto, tanto tempo até ao fim da minha vida… Às vezes fico doido de pensar como o tempo passa tão devagar e como o meu corpo envelhece tão depressa.
Mas não devia permitir-me pensar coisas destas. Não me posso esquecer de que o tempo só me assusta quando penso que tenho que o passar sozinho. Às vezes faz-me medo a quantidade de pensamentos meus que andam à roda fazendo-me sentir melhor quanto a dormir sozinho num quarto.

3.
Foi há anos. Tinha passado por uma fase de intensa reflexão e feito imenso alarido por estar a cortar os meus vínculos com o passado. Tinha-me mudado para um quarto num hotel da baixa, pago à semana e sem água quente, cortado o cabelo todo, deixado de fazer a barba e mandado tatuar cardos no meu braço direito. Passava os dias deitado na cama a olhar para o tecto, a ouvir brigas dos bêbados nos quartos dos outros, a chiadeira das televisões dos outros, partirem-se os espelhos dos outros. Os meus companheiros de hotel eram uma mistura de reformados, fugitivos, dealers e por aí fora. O conjunto dava um rico cenário para a minha convicção de que a pobreza, o medo da morte, a frustração sexual e a incapacidade de me ligar às pessoas haveriam de me arrastar para uma espécie de Epifania. Tinha montes de amor para dar, só que ninguém o queria. Pensei que encontrava alívio na solidão, mas, muito honestamente, estava apenas a ganhar o verniz da amargura.

4.
Donny estava sempre a apanhar facadas. A sua pele começava a parecer o assento de couro duma estação ferroviária, mas isso não o ralava nada. Certa vez, depois de uma exibição de rua a seguir a uma grande noite Alexis-versus-Krytle num dos clubes, Donny chegou a casa com meia dúzia de cortes vermelhos escritos por toda a barriga. Tentei mandá-lo para o hospital, para o coserem, mas não quis. Quando lhe perguntei se não se preocupava com a hipótese do acidente definitivo, ele lançou-me um olhar ponderado e disse:
- A vida é minha e é assim que a vivo.
Nunca mais o interpelei depois disso.
Mas Donny estava sempre a fazer-se à facada. Dizia que levar facadas não dói tanto como se pensa, que até é fixe e que, quando acontece, «meu, quando a lâmina entra em ti pela primeira vez faz-ta alma saltar pa fora por um instante, como um salmão a saltar de um rio».
Mas lembro-me de ele me dizer que estava a ficar um pouco cansado de ser anavalhado. Disse que, no fundo, o que queria era levar um tiro. Tinha tanta curiosidade de saber como seria levar um tiro. Para facilitar a pontaria, usava sempre as camisas abertas ao peito, como uma pessoa de 1976.

5.
Para alguém que já tenha rompido com alguém:

Estou sentado contra a mesa do café na sala, numa noite de Domingo, confuso, acabado de acordar de um sono muito muito profundo num sofá partilhado com caixas de pizza e embalagens de plástico de iogurte de cereja esmagadas. Na minha frente, está um concurso da TV a passar em MUTE e a minha cabeça repousa nas minhas mãos juntas, como se estivesse a rezar, mas não estou; estou a esfregar os olhos a ver se acordo, o meu cabelo escova o tampo da mesa que está coberto de migalhas. Penso para comigo que, apesar de tudo o que aconteceu na minha vida, nunca perdi a sensação de estar sempre na iminência de alguma revelação mágica, de que se ao menos pudesse acordar um pouco melhor, então…bem, deixem-me contar o que aconteceu nesse dia.
Hoje foi assim: levantei-me ao meio dia; café instantâneo; vi um talk show; um concurso; um bocado de futebol; uma coisa qualquer religiosa; a seguir desliguei a televisão. Vagueei sem destino pela casa, de quarto silencioso para quarto silencioso, fiz girar as rodas das duas bicicletas de montanha nos seus suportes da entrada e endireitei uma pilha de CD que se tinha colado com laranjada entornada, na sala. Acho que tentava fingir que tinha mesmo coisas para fazer, mas, bem, não tinha.
Tinha a cabeça a arder. Aconteceu tanta coisa na minha vida ultimamente. E ao cabo de horas sem objectivo, acabei por admitir que já não aguentava estar só nem mais um momento. Por isso engoli o orgulho e fui até casa dos meus pais, a minha verdadeira casa, acho eu. Hoje foi o primeiro dia em que verdadeiramente se pode dizer que o Verão acabou. O ar frio espevitou, as folhas dos bordos estão a apodrecer, a mostrar o seu lindo bolor, como panquecas mortas.
Quando cheguei lá a cima, a minha mãe estava na cozinha – a fazer sandwiches de queijo fresco à moda de 1947, com morrones e sem crostas, para meter no frigorífico antes que viessem as amigas do bridge. O pai estava sentado à mesa da cozinha a ler o jornal. Claro que eles sabiam o que tinha acontecido recentemente e por isso andavam à minha volta como quem pisa ovos. Isso fez-me sentir esquisito e visto à lupa, por isso subi para ir sentar-me no quarto de hóspedes a olhar pela janela para os V de gansos que grasnavam a caminho do sul. Foi apaziguador, ver tantas aves a voar – ver todas essas coisas que há no nosso mundo e podem voar.
A mãe tinha deixado a televisão ligada no quarto de dormir, o quarto ao lado. A CNN dizia que o Super-homem estava marcado para morrer ainda esta semana, no céu sobre Minneapolis, e eu fiquei momentaneamente fora de mim. Pensei que certamente seria uma coincidência, pois tinha acabado de visitar a cidade de Minneapolis há um mês, numa viagem de negócios: uma cidade nova de cristal, tudo a brilhar como quartzo, erguendo-se dos campos de milho. Segundo a televisão, o Super-homem devia morrer numa batalha aérea sobre a cidade, travada com uma força, extremamente maligna e, embora eu soubesse que tudo não passava de um truque de publicidade barata para vender mais banda desenhada – e há duas décadas que nem sequer leio uma revista do Super-homem -, a ideia indispôs-me. (..)
A Mãe diz que as pessoas só se interessam pelas aves se tiverem comportamentos humanos – gula, estupidez, ira – e assim nos libertarem do terrível desgosto por sermos humanos. Ela acha que os humanos estão fartos de arcar com as culpas todas pela maldade do mundo. (..)
E depois veio outra vez a história do Super-homem ir morrer, só que vi que tinha percebido mal a cidade: ele devia morrer sobre Metropolis, não Minneapolis. Mas continuei triste. Sempre gostei da ideia de Super-homem porque sempre gostei da ideia de haver uma pessoa no mundo que não faça maldades. E de haver uma pessoa no mundo que saiba voar.
Eu próprio sonho muitas vezes que estou a voar, mas não é voar como faz o Super-homem. Limito-me a puxar os braços para trás dos ombros, a planar, e avanço. Não é preciso dizer que é o meu sonho favorito.
a partir de Douglas Coupland