segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Discotheater (apontamentos)

1.
Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas.
Herberto Hélder

2.
O que está hoje em jogo é a reconquista da democracia contra a tecnocracia: é preciso acabar com a tirania dos “especialistas”, estilo Banco Mundial ou FMI, que impõem sem discussão os veredictos do novo Leviathan, “os mercados financeiros”, e que entendem não negociar, mas “explicar”…
Pierre Bourdieu

3.
E é a defesa da arte que dá origem à estranha visão pela qual uma coisa que aprendemos a designar «forma» fica separada de outra coisa que aprendemos a designar por «conteúdo», e à bem-intencionada ideia que vê o conteúdo como essencial e a forma como acessória.
A interpretação, baseada na teoria altamente duvidosa de que a obra de arte é composta por elementos de conteúdo, é uma violação da arte. Torna a arte num objecto para uso, para enquadramento num esquema mental de categorias.

[Assim, as notas que Elia Kazan publicou sobre a sua produção de A streetcar named Desire, tornam evidente que , na realização da sua peça, Kazan devia descobrir que Stanley Kowalski representava a barbárie sensual e vingativa prestes a engolir a nossa cultura, ao passo que Blanche Du Bois era a civilização ocidental, a poesia, a elegância delicada, a luz tamisada, os sentimentos refinados e assim por diante, ainda que um pouco gasta pelo uso, como é natural. O vigoroso melodrama psicológico de Tennessee Williams tornava-se assim inteligível: era sobre alguma coisa, sobre o declínio da civilização ocidental. Aparentemente, se continuasse a ser uma peça sobre um brutamontes bonito chamado Stanley Kowalski e uma fanada beleza tinhosa chamada Blanche Du Bois, não teria interesse nenhum.
Do mesmo modo, Ingmar Bergman pode ter visto como um símbolo fálico o carro blindado que retumba à noite pelas ruas vazias em O Silêncio. Mas a ser assim, foi uma ideia estúpida.
(«Nunca confies no contador, confia no conto», disse Lawrence.)
Os que buscam uma interpretação freudiana do tanque estão apenas a manifestar a sua incapacidade de reacção ao que vêem no ecrã.]

É necessário, antes de mais, uma maior atenção à forma. Se o excessivo realce dado ao conteúdo provoca a arrogância da interpretação, uma descrição mais ampla e aprofundada da forma poderia silenciá-la.

A redundância é a principal chaga da vida moderna.
Em tempos (numa época em que a grande arte era escassa), deve ter sido um passo revolucionário e criativo interpretar as obras de arte. Hoje não o é.

O que é importante hoje é recuperar os nossos sentidos. Temos de aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais.

Em vez de uma hermenêutica precisamos de uma erótica da arte.
Susan Sontag

4.
Se compreendemos, se acedemos de um modo ou de outro a uma orla de sentido, é poeticamente. Isso não quer dizer que qualquer tipo de poesia constitua uma medida ou um meio de acesso. Isso quer dizer – e é quase o contrário – que apenas esse acesso define a poesia, e que ela só tem lugar a partir do momento em que ele tem lugar.
«Poesia» não tem exactamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um sentido a cada momento ausente, e transferido para longe. O sentido de «poesia» é um sentido sempre por fazer.
A poesia não será assim o que é senão sob a condição de ser pelo menos capaz de se negar: de se renegar, de se recusar ou de se suprimir. Ao negar-se, a poesia nega que o acesso ao sentido possa ser confundido com um qualquer modo de expressão ou de figuração. Ela nega que o que é «elevado» possa passar a estar ao alcance da mão, e que o que é «tocante» possa ser extraído da reserva a partir da qual, precisamente, ele toca.
A poesia é assim a negatividade na qual o acesso se torna naquilo que é: isso que deve ceder, e com esse fim começar por se esquivar, por se recusar.
O difícil é o que não se deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz. Ela faz o difícil. De repente, facilmente, estamos no acesso, isto é, na absoluta dificuldade, «elevada» e «tocante».
Mais do que um acesso ao sentido, é um acesso de sentido.
O poema é coisa feita do próprio fazer.
Como se diz: fazer amor, que é não fazer nada, mas fazer ser um acesso. Fazer ou deixar: simplesmente pôr, depor exactamente.
Que não nos venham falar de ética ou de estética da poesia. É mesmo a montante, no seu mais que perfeito imemorial, que se firma o fazer designado «poesia». Queda-se agachado como um animal, flectido como uma mola, e deste modo em acto, já.
Jean-Luc Nancy