terça-feira, 3 de janeiro de 2006

Discotheater / Sobre os fragmentos

" Optando pelo que Wolfgang Heise chama de 'dialéctica poética do fragmento', [Heiner] Müller insere-se na tradição do fragmentário que remonta, no que concerne à modernidade literária alemã, aos seus fundadores, F. Schlegel e Novalis. Num texto de 1975, o autor observa que nenhuma literatura é tão rica em fragmentos como a alemã, fenómeno que atribui ao carácter fragmentário da história alemã e à consequente ruptura da relação literatura-teatro-público (sociedade). Numa carta a Linzer, então editor da revista Theater der Zeit, o autor afirma:
A necessidade de ontem é a virtude de hoje: a fragmentação de um acontecimento acentua o seu carácter de processo, impede o desaparecimento da produção no produto, a produção torna a cópia num campo de pesquisa no qual o público pode co-produzir. Não acredito que uma história que tenha 'pés e cabeça' (a fábula no sentido clássico) ainda seja fiel à realidade.
Fragmento é visto aqui como texto que pode variar no tocante à extensão, género ou tipo de linguagem cénica. Heise refere-se aos fragmentos müllerianos como 'unidades em si' - minidramas, imagens, cenas fantásticas, visões.
O trabalho com o fragmento tem, para o autor, várias funções. Uma delas, de grande importância, é a de impedir a indiferenciação das partes numa aparente totalidade e activar a participação do espectador. Na verdade, trata-se de uma continuação radicalizada do teatro praticado por Brecht, visando igualmente a uma abertura para efeitos, de forma a evitar que a história se reduza ao palco. O fragmento torna-se produtor de conteúdos, abrindo-se à subjectividade do receptor, correspondendo ao que Müller chama de 'espaços livres para a fantasia', na sua opinião uma tarefa primariamente política, uma vez que age contra clichês pré-fabricados e padrões produzidos pelos media.
O trabalho com o fragmento provoca também a colisão instantânea de tempos heterogêneos, possibilitando a revisão crítica do presente à luz do passado. São muitos os testemunhos de Müller a respeito da necessidade do trabalho de memória; segundo ele, a memória de uma nação não deveria ser apagada, pois isso significa a sua sentença de morte. Mas não é apenas nesse sentido que se faz indispensável dirigir o olhar para o passado: na sua opinião, para se livrar do pesadelo da história é preciso conhecê-la e dar-lhe o devido valor. A visão mülleriana da história insere-se na tradição dos oprimidos, seguida pela filosofia marxista.
Marx fala do pesadelo de gerações mortas, Benjamin da libertação do passado. O que está morto não o é na história. Uma função do drama é a evocação dos mortos - o diálogo com os mortos não se deve romper até que eles tornem conhecida a parcela de futuro que está enterrada com eles."
Ruth Röhl/Heiner Müller


"O mundo - e não apenas o nosso - está fragmentado.
No entanto não cai em pedaços. Reflectir sobre isso parece-me ser uma das primeiras tarefas da filosofia de hoje."
Cornelius Castoriadis