quarta-feira, 4 de janeiro de 2006

Discotheater

1.
“Nasce-se incendiário e morre-se bombeiro.”

2.
“Se as personagens de um romance teu se lavam antes e depois de terem feito amor, e no banho deitam água-de-colónia, então és um escritor pornográfico. Se não se lavam, és um verista.”

3.
“Dado que estamos na senda das confidências, reconheço ter relegado para segundo plano a delinquência do leitor. Mas eu explico-me: na rua, quando rebenta um litígio ou acontece um incidente na circulação, aparece, de improviso, das vísceras da terra, um indivíduo que tenta dar uma pancada com o guarda-chuva a um dos rivais, e geralmente é ao automobilista. O «delinquente» desconhecido desafogou o seu rancor latente. Assim é nos livros: o leitor que não tem ideais ou só as tem em estado amorfo, quando encontra uma frase pitoresca, fosforescente ou explosiva, enamora-se dela, adopta-a, comenta-a com um ponto de exclamação, com um «belo!», um «justamente!», como se ele a tivesse sempre pensado desta maneira e aquela frase fosse o extracto, a quinta-essência do seu modo de pensar, do seu sistema filosófico. Ele «toma posição», como dizia o Duce.
Eu ofereço-lhe o modo de tomar posição sem descer à selva das várias literaturas.”

4.
“ Reparei que andam com certa graça. Transportar com equilíbrio bandejas de bebidas proporciona um belo andar. As grandes senhoras deveriam fazer um tirocínio como empregadas de café. Levante-se, por favor. Dê dois passos. Sente-se. Não. Disse para se sentar, não para procurar o assento com o corpo… Evite correr. É melhor perder o comboio que perder a linha. Se as suas condições não lhe permitem ter senão um fato de cretone, faça um fato de cretone, simples, fresco, jovem, de uma peça que ainda tenha o cheiro da loja. Não junte bocados de veludo e retalhos de lamé para ter um casaco de imperatriz de marionetas. Um par de sandálias ficam-lhe melhor que uns chinelos de cisne… Se não tem recursos para um apartamento luxuoso, arranje um estúdio de artista: duas estampas de Utrillo ou de Dufy tiradas da Illustration e fixadas com quatro alfinetes dão mais estilo do que uma tela a óleo sem qualquer valor. Ofereça um café em vez de um mau espumante, um sumo de limão em vez de um licor medíocre, mas se oferecer um conhaque, que seja um Hennessy. Não brinque com os objectos que tem na mão. Utilize o isqueiro, mas não se divirta a abri-lo e a fechá-lo; não faça saltar o fecho da mola; se tem o hábito de pôr de pé, e depois na horizontal, o bâton, perca-o; não agarre nos objectos que vê sobre as mesas, não faça barcos com a prata dos cigarros, nem massa com o canto dos jornais. Não tamborile nem assobie: não respire profundamente, não se assoe barulhentamente nem faça fumo, mostre tédio, desaprovação, espanto ou parecer contrário. Não ande com um polegar à volta do outro, ou com as chaves do automóvel. No comboio, não brinque com a tampa do cinzeiro…
Tem o tom adequado: nunca levante a voz. Não faça aquilo que os Ingleses chamam personal remarcs, isto é, nunca diga ‘mais gordo, está pálido, está bem, está a perder os cabelos’. Não tire o fio dos casacos, o pêlo da gola, o mosquito do colarinho… Nunca acabe, nos pareceres em matéria de arte. Na pintura moderna é fácil trocar um nascer do Sol por um pôr de Lua. Esteja igualmente com atenção ao julgar a poesia moderna… hoje, os maus versos assemelham-se de tal modo aos belos que há o perigo de os confundir…
Não conte nada de si. Não diga que já esteve em Varsóvia, que morou em Berlim, que sabe estenografia. Um dia, terá oportunidade de se referir aos oitocentos crocodilos do Zoo, ao monumento a Chopin e de fazer alguma referência ligeiar; e estas coisinhas, nunca ditas anteriormente, adquirem um valor imenso.
Evite as expressões vulgares como ‘ir ao âmago da questão’, ‘as ideias belicosas’, o ‘acto material’, ‘em minha casa é assim’… Não repita frases comuns, ‘é preciso mais coragem para viver do que para se suicidar’, ‘as cores do Outono são mais belas do que as cores da Primavera.”
Pitigrilli