quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

Jornal Público

O desastre na cultura pública
Augusto M. Seabra

Fizeram as circunstâncias com que a reacção pública sem precedentes ao "somatório de contradições, desconhecimentos, desrespeitos e incompetência" da ministra da Cultura, e ao "acto aberrante altamente simbólico" que é a repentina substituição do director do Teatro Nacional D. Maria, ocorresse no quadro de uma campanha presidencial em que há candidaturas que fazem particular gala em ostentar nas suas comissões nacionais a distinção simbólica dos galões culturais, e viesse a coincidir com a abertura na Assembleia da República da exposição O Poder da Arte, organizada pelo museu de Serralves.Este quadro obriga à explicitação de alguns dados de base dos padrões de cultura em sociedades democráticas e abertas. As opções culturais, e sobretudo as estéticas e de gosto, são parte integrante dos direitos dos cidadãos, da liberdade individual. Mas essa autodeterminação é condicionada pelas possibilidades de formação, diversidade e escolha, o que implica também as garantias do Estado do exercício das suas obrigações do modo mais isento, sendo que o mesmo Estado e os seus agentes políticos não dispensam também a legitimação do poder simbólico da arte e da cultura.A cultura é um conjunto de tradições e dinâmicas, e muito mal estaríamos se ela dependesse exclusivamente da acção do Estado. Mas as fragilidades do tecido cultural em Portugal obrigam a uma acção pública particularmente atenta, e com tanto mais garantias de isenção, e não continuadas práticas de intervenção ao sabor de cada governo e dos interesses associados.O Governo tem um mandato inequívoco, mas, de acordo com um princípio elementar do contrato político nas sociedades liberais e democráticas, está obrigado a fazê-lo no respeito pelos princípios gerais do Estado e do seu próprio compromisso público.Uma das características singulares da Carta Aberta ao Primeiro-Ministro, disponível em http://www.petitiononline.com/mod_perl/signed.cgi?minist&101, é vir relembrar os termos do próprio compromisso governamental e exigir o seu cumprimento, face às violações que têm vindo a ser feitas pela ministra Isabel Pires de Lima, e designadamente, no respeitante aos teatros nacionais e congéneres, tornar as suas direcções artísticas "menos dependentes da lógica da nomeação governamental directa". Não se trata de uma específica defesa do actual director do Dona Maria, mas de uma posição de princípio, a qual se tornou já no movimento mais abrangente de que há memória, como se constata nas mais de 1200 assinaturas, e na presença de autores e quadros culturais provenientes de praticamente todos os sectores. É um movimento cívico, tudo menos corporativo. O indigitado novo director do Nacional, Carlos Fragateiro, declarou que "há muito tempo que tem vindo a discutir projectos" com o secretário de Estado da Cultura, Mário Vieira de Carvalho, que a "grande vocação do teatro nacional" seria "trabalhar a dramaturgia portuguesa" clássica e contemporânea, e que com base na sua experiência no Teatro da Trindade considera haver material e público para uma linha de acção como adaptar romances; mais dizia que, numa segunda fase, queria "apostar nos autores lusófonos e no eixo ibero-americano". Isto é claríssimo, e tanto mais esclarecido pelo que foi ao longo de anos a acção de Fragateiro, a tal que fez com que "há muito tempo viesse a discutir projectos" com o secretário de Estado. Ele anunciou o divórcio do Teatro Nacional do património dramático europeu e universal, clássico e contemporâneo, reiterando a criação de uma esdrúxula dramaturgia, de adaptações e vulgarizações. A sua nomeação não é apenas uma substituição de directores mas a declaração, a partir de uma das cúpulas simbólicas da acção cultural do Estado, de um dirigismo cultural populista.Porque está em causa uma questão de princípio, não entro no jogo de transformar a discussão necessária no detalhe da gestão do actual director. Não deixo, ainda assim, de notar que pego no jornal e vejo que hoje estão em cartaz no Nacional quatro espectáculos. Que há visivelmente plano de acção, esteja-se ou não de acordo com ele, e um relatório e contas da gestão de 2004 aprovado, com os necessários pareceres. Que é possível constatar um acréscimo significativo de ocupação. E que, como é óbvio, qualquer interrupção do mandato não pode deixar de ser feita dizendo especificamente que itens do Decreto-Lei nº65/2004 de 23 de Março não estão a ser cumpridos, coisa que não se ouviu. Em conformidade, a conclusão é só uma: um golpe no teatro.Estar atento à correcta gestão dos teatros nacionais, como da generalidade dos organismos culturais públicos, é obrigação dos governantes. É tristemente revelador da estreiteza de horizontes dos responsáveis da tutela que na sua engasgada conferência de imprensa o que tenha antes de mais transparecido é a obsessão com o vencimento do director do Nacional enquanto presidente de uma sociedade anónima, em lugar de, como lhes competia, terem trabalhado para um novo quadro institucional em vez desta absurda situação de um Teatro Nacional ser uma SA.Mas tenho mais coisas a dizer: a tão necessária abertura à comunidade, onde está ela, por exemplo, como repetidamente tenho perguntado, no São Carlos e, pela mesma ordem de discurso, quanto custa ao erário público cada espectador do teatro nacional de ópera? Vejo um teatro estagnado em termos de público, cada vez mais envelhecido e bafiento, quando a sua actual direcção até seria favorável a uma política de renovação. Mas, ironia da história, Vieira de Carvalho vem confirmando a mais classista e restritiva concepção de um teatro nacional de ópera.Perguntei à ministra da Cultura que programa de acção tinha apresentado o Museu do Chiado e se o seu desvio das funções estatutárias se tem ou não traduzido na frequência. A informação está disponível em http://www.ipmuseus.pt/pt/museus/M4/TM.aspx mas só Pires de Lima não quer consultar os dados do seu ministério. Entre 1999 e 2004 esse museu teve uma quebra de visitantes de 33 por cento! E poderemos também saber, em contrapartida, o que é a resposta pública à nova dinâmica do Museu Nacional de Arte Antiga, onde esta ministra contudo nunca se dignou pôr os pés, como não sabe da Companhia Nacional de Bailado, como não acompanha as dinâmicas autónomas.Isabel Pires de Lima é um monstro de incompetência. É politicamente óbvio para toda a gente que na primeira ocasião a ministra sairá. Mas, entretanto, que consequências advirão de continuadas estagnações e usurpações ou novas nomeações? Como se pode permitir que "o somatório de contradições, desconhecimentos, desrespeitos e incompetência" faça também ressurgir inadmissíveis quadros de acção, para "ao serviço do povo" moldar os gostos e as opções e direitos culturais? Como e até quando?