quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Crítica Eurovision



No princípio, são as línguas. Encerrado numa white box acanhada, o público de Eurovision é interpelado por um arrazoado confuso, que intercala as línguas dos países participantes no Festival Europeu da Canção. As legendas projectam-se em "língua franca" (o inglês, hélas!). A proximidade excessiva de Pedro Penim e as suas oscilações de registo - sedutor, intimidador, irónico -, estabelecem o primeiro paradoxo da mais recente criação do Teatro Praga ou o se segue o actor e se perde o significado discurso, ou se lêem as "legendas" e se desvaloriza o valor expressivo dos signos não-verbais (ou - terceira hipótese - conciliam-se ambas as tarefas e entra-se nesta denúncia pop do acto teatral). Depois, é a Europa. Ou melhor uma geografia porosa onde as melodias foleiras do indeclinável Festival da Canção convivem com a argúcia desencantada de um Beckett ou de um Steiner. Segundo paradoxo, então: a identidade europeia como intriga teatral, com inimigos cúmplices à caça de imagens (esta tirania da representação "certa", que hoje se impinge em coletes-de-forças domesticadores, origina uma das sequências mais hilariantes do espectáculo: a tentativa de desenhar as imagens sugeridas por um texto de Beckett). No fim, come-se o bolo. Não há Jogo da Glória sem tabuleiro, vencedor e prémio. Terceiro paradoxo o sucesso duma peça depende de criador e público coincidirem na mesma casa. O chão da white box retalha-se, pois, num tabuleiro. Avançar ou recuar pode significar um salto entre o naturalismo tchékhoviano - nada, num palco, acontece por acaso - e o caos aparente da performance "desconstrucionista". Esta instabilidade obriga os intérpretes a envergarem fatos protectores e a substituírem a iluminação da sala por lâmpadas de espeleologia. Buscam um "esperanto" dramatúrgico. Debalde. O que fazer? Dançar freneticamente ao som de sucessos passados do Festival da Canção e, porque algum "consolo" se há-de levar para casa, oferecer uma colorida fatia de bolo ("este é o meu corpo", disse alguém; e o actor não repetirá dádiva semelhante, a cada nova récita?). E que sentido isto tem? Quatro e último paradoxo o espectáculo terminou. Socorrendo-me dum conceito caro a Pedro Penim, diria que Eurovision foi um didáctico "rizoma" - "labirinto que conduza a toda parte e não leve a lugar algum", definiu-o Umberto Eco -, onde as angústias criativas que o Teatro Praga vem alimentando se entrechocaram numa féerie inteligente, despretensiosa e deliciosamente irónica. Lamenta-se, apenas, a sua curta carreira.

Crítica a Eurovision por Miguel-Pedro Quadrio,
Diário de Notícias, Domingo 12 de Fevereiro 2006