texto final do espectáculo 'Sobre a mesa a faca' a partir de Hubert Reeves:
" Fiquei muito tempo diante deste espectáculo com a impressão de estar a viver um momento importante. Por detrás desta curiosidade, reconheço, sem dúvida, uma componente de ansiedade, senão mesmo de angústia. O que me chamou sobretudo a atenção foi a tristeza que dele emana. Creio que tenho muita sorte. Faço aquilo de que gosto e sou pago para isso. Quantas pessoas neste planeta terão esse privilégio? A vida trata-me bem e eu estou-lhe profundamente reconhecido. Sei que tudo isto é frágil e está ameaçado, por isso tento usufruir plenamente enquanto dura. Vou-te contar uma história que me marcou muito. Tinha mais ou menos 10 anos. Era Inverno. Subia para cima dos bancos de neve nos bordos das ruas. Na noite, que quase já tinha caído, uma janela atrai a minha atenção. No interior, as luzes dos pinheiros de Natal piscam e cintilam. Há mamãs, há bolos, há crianças que cantam. A trepidez do lugar contrasta com o vento frio que me fustiga a cara. Queria estar ali. Nada tinha de semelhante à minha família, onde os estudos são a única e hegemónica preocupação. Tenho subitamente a impressão de passar ao lado da vida. Esta imagem de festa de crianças nesse dia de ventos gelados regressa-me muitas vezes à memória. Provocou em mim uma vontade feroz de viver e de criar vida. Apoiou-me em certos momentos em que, ultrapassado pelas emoções, fui tentado a fechar-me na minha concha. Tenho um desejo premente de ser afectivamente tocado por seres humanos. A palavra «compreender» não tem o mesmo sentido para toda a gente. Creio que uma fada boa me deu, quando nasci, um presente inestimável: uma espécie de optimismo inveterado e inextirpável, em relação, por exemplo, ao sentido da realidade."