quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Texto

(texto para o JL*)
Latas de Tinta

Levaram-me tudo. Roubaram-me tudo. Anularam-me tudo. Desintegraram-me tudo. As imagens da TV. Gratuitas, já sem taxa cobrada. E eu choro. Com o punho erguido. Com a flor torneada pelos dedos. Aquela realidade que não é a minha, e ao mesmo tempo é real. Isto é, está a acontecer na realidade. Aos meus olhos. A realidade que só consigo imaginar a preto-e-branco. Ou a sépia. Não a cores. Nunca a cores. A cores não. A cores é a outra realidade. O vermelho do bólide do puto sépia. A preta e o branco que estão rosados/roçados nos bancos da medieval Portugália. A noite azul que tranca todas as liberdades em quatro paredes de sólido tijolo invisível coberto por betão multicolorido de tintas decididas, decididamente, como as do ano; tudo e todos frente a uma TV que já não precisa de ser vista às escondidas em prateleiras de metal marmóreo, ou caves improvisadas contrabandeadas do leste; famílias inteiras condenadas pela fábula, à procura de novas tonalidades.
Mais, o dia amarelo pardacento que devolve essas liberdades à calçada tonificada de antiquíssimos cagalhões e mijo de pombo, para finalmente, sim, acabarem de vez com a árdua tarefa de privatizar os seus desejos e direitos. E mais ainda. As lojas giras que me inundam de geometria e efeitos. As gentes rasando, de livro na mão, as montras culturais nobres que destacam esse mesmo livro, e toda a panóplia artesanal da aldeia universal. Coisas importantíssimas. De outra forma não teríamos acesso. As gentes arrogantes que te entreabrem os olhos usando as suas pestanas pincéis para se pintarem e pintarem o país de cores garridas, para tapar a negridão do seu interior, o sépia do seu cérebro.
E eu choro. Com o punho erguido. Com a flor torneada pelos dedos. Aquela realidade que não é minha, e ao mesmo tempo é real. Todos os anos na mesma data. A minha avenida é interrompida. E lá me encontro eu interrompido no meu trajecto. Dentro do carro. Cigarro na boca. A ouvir berros de apoio, choro convulsivo. A imagem da CDU. A mesma que se via da ponte 25 de Abril, lá em baixo no Ginjal, julgo eu, durante paragens intermináveis de Verão a caminho da Fonte da Telha. E eu choro. Com saudades não sei bem de quê. Das histórias ilegais dos meus pais, de quem não faço sequer a menor ideia de que tivessem sido alguma vez jovens. Os canteiros plantados da Calle, localizados não sei bem onde. O Penim sénior que dorme assaltado por imagens de tiroteios desenfreados no corno sabe-se lá bem de que floresta. A Bella Ciao, e qual é a versão original, perguntar-me-ia eu para passar o tempo naquele maple-single-sem-braços e sem espaço para esticar as pernas. E o Pêra de câmara-ao-léu no meio do cortejo maioritariamente debilitado e sustentado por varas herdadas. E as cooperativas, vi na TV, que ideia maravilhosa. Bem… lembro-me da UCAL. Cheguei a beber. E o Zip-zip, comprei um vinil 45 rpm há pouco tempo na feira da ladra. Uma foto a preto e branco, com o Carlos Cruz, novo, parecido com o meu pai numa fotografia que eu tenho, dizem milhares de pessoas como eu em coro. E a Lisboa das grandes avenidas; Wagner num livro de música, tenho a foto, a preto-e-branco também.
Misturo tudo.
Divido a vida por cores: a parte a preto-e-branco, e a multicolor. Divido-a por actividade: a parte a preto-e-branco é cheia de Vida, e a multicolor está morta. E acuso frequentemente como assassinos desta minha era os mesmos que deram movimento à anterior, seja lá ela a que for. E esse movimento embora possa facilmente ser associado a Vida, é a meu ver, simplesmente um acto mecânico, o ir à procura de pincéis para pintar esta merda toda que me gira à volta. Um caralho de país que no interior está esturricado e bolorento ao mesmo tempo, e por fora bandeirola de uma puta de produtos cosméticos. Será que posso dizer isto, perguntaria a atrasada mental da agente cultural da 2:? Claro que podes minhota de bigode, isto é muito mais colorido do que os “de todo”, e…….
- Já posso passar, senhor polícia? (Pausa.) É que vou ali ao hospital, fazer uma transfusão de sangue… mas quando voltar, estaciono para ali… fora da avenida. Desculpe? Ainda não decidi, talvez troque com o Nuno Bragança, ou o José Mário Branco, e que tal o Sérgio Godinho. Pode ser com o Otelo. Ou mesmo com um pide. Eh pá, é que mais do que sentir, também quero saber. Não tenho liberdade para saber como é que foi?

André e. Teodósio
06-04-2004

* Texto escrito a convite do Jornal de Letras para as comemorações do 25 de Abril (nunca chegou a ser editado)