Teste ao Público
(Os actores tiram o cenário do palco, deixando-o vazio. A Sofia vem falar com o público.)
Vou agora abrir um espaço de improvisação dentro deste espectáculo. Um momento que não está preparado. É assim como… pedir-vos para se porem dentro de um puzzle, ou vestir uma roupa e fingir que são uma coisa que não são.
A partir de agora não há guião, não há preparação, tudo é feito em cima do joelho.
A partir de agora não há resolução possível para este espectáculo.
Não há forma imposta para além daquela que é visível. E como viram, tirámos tudo do palco. Só cá estamos eu e vocês.
Tudo o que acontecer neste espaço que eu estou aqui a abrir está nas mãos do acaso, do imponderável, do acidente. Os acidentes são muito importantes _ ocorrências que podem proporcionar uma lógica teatral. Assim como coisas que acontecem e que não estavam planeadas. (Silêncio. Faz uma expressão.)
Este silêncio, por exemplo, não estava programado. O que aconteceu foi que nem eu nem vocês conseguimos enchê-lo.
Peço-vos que não contem com a minha imaginação ou com o meu virtuosismo para construir coisa alguma.
Estejam à vontade para sugerir a ocupação deste espaço. Aliás este espaço é vosso. Pressupõe-se neste momento que o público comande.
Há aqui uma metáfora óbvia pronta a ser lida. Um óbvio simulacro.
(Silêncio.) Isto não devia acontecer outra vez. É sinal de alguma ineficácia vossa, e em parte minha também, e de algum bloqueio.
Às vezes durante o trabalho, ficamos bloqueados e o melhor é pôr-mo-nos a andar pelo espaço e a pensar: Porque é que as coisas que estão aqui neste espaço vazio não podem fazer parte do espectáculo? Como é que se pode fazer um espectáculo que fale do mundo em que vivemos agora? Que coisas teria de ter? Que tipo de cenas fariam se tivessem um espaço como este?
Posso também fazer outra pergunta: O que é que gostariam de ver aqui no palco? O que é que gostariam de ver fazer aqui, que ainda não tenham visto fazer aqui, ou noutro sítio qualquer?
Provavelmente isto não se aproxima suficiente da folha em branco.
Vou tirar a roupa.
Convido-vos a fazer o mesmo. Ficamos mais disponíveis. Ficamos mais livres para criar. Já vi que há pessoas que não concordam comigo, mas vou ficar nua à mesma. O quê? (Risos.) O quê? A sério, não percebi. Diz lá. (Pausa.) Continuo aberta a sugestões e o tempo está a passar.
(Nua.) Pronto. Não fiquem com vergonha. Quero dizer… Mais do que aquela que já têm… Pelo facto de isto se estar a passar agora. Este momento que eu abri, quero eu dizer. Pelo facto de isto estar a acontecer e de vocês estarem a ser testemunhas. (Silêncio.)
É horrível. Isto está a ser um momento horrível.
Compreendo perfeitamente que não se diga nada. Nada aqui inspira a criar o que quer que seja? É? Provavelmente tirar a roupa foi só a cereja no topo do chantilly. Só ajudou ao vazio.
Precisavam pelo menos de um tema.
Não? Há cabeças a abanar em sinal de discórdia.
Então porque é que não propõem nada? Acho que precisam de um objecto. Ou de vários objectos. (Silêncio.) Claro que precisam. Precisam certamente, pelo menos, de uma personagem… Não? Ou de uma história… Que vos permita criar um qualquer foco de interesse que aqui não existe.
Ok ,não precisam de uma história, a história pode ser o que acontece aqui e agora à vossa frente. Uma narrativa que não está preparada para ser contada. As histórias são… as acções que as pessoas fazem.
Isto é um verdadeiro bloqueio. Não corre uma brisa de inspiração que seja.
Podemos desbloquear pensando o que outras pessoas fariam nesta situação.
Por exemplo:
O que faria o Patrice Chereau nesta situação?
Aconselho-vos a pegarem num cigarro e a fumá-lo. (Fá-lo) E em casos mais extremos irem até ao bar beber um café ou uma bebida qualquer. Depois de beber, pode-se fazer um trabalho muito bom. Muito criativo.
Às vezes quando não sabemos o que fazer, ou quando estamos bloqueados é bom parar tudo e olhar para o palco, para o cenário. (Fá-lo.) Bloquear. Bloquear muito. É bom quando se bloqueia porque se podem fazer perguntas muito difíceis sobre o material produzido. Do género: gostamos do material, depois bloqueamos e de seguida odiamos o material.
Podemos também pôr um disco e pensar no que vai acontecer a seguir. (Põe um disco.)
(Durante o disco.) Podemos forçar o material. Até sair qualquer coisa.
Devem perguntar-me alguma coisa. Alguma merda caralho.
Se isto fosse um ensaio geral, se a estreia fosse amanhã, não teríamos grande coisa para apresentar, pois não?
Este espaço nunca começou. Nunca aconteceu. Este espaço nunca acaba.
(Entram os outros actores.) Não deu. Hoje não deu.
in Agatha Christie (2005)
(foto: Ângelo Fernandes)