Lembraram-me da Noite e o Riso. E que tal uma reposição desse espectáculo?, foi a pergunta. Não me parece que seja possível. Mas no entretanto, tresli a obra, o magnum opus da literatura portuguesa. Relembrei-me de passagens do espectáculo. Sublinhei outras novas.
Aqui dedico algumas a alguns:
Para o Marcello: De repente eu te ressurgia como quem se despediu de outrem numa gare, e vai feito surpresa, de avião, esperar no terminal o comboio que horas antes viu partir?
Para a Jardim: A Teresa viu as minhas lágrimas e pensou que era um ataque de ternura por ela, abraçou-me. O que me desagradou imenso, ela não é minha contemporânea.
Para a Patty: Sinto que pertenço a um País que em parte me não quer. Uma pessoa é também a movimentação que comunica à comunidade em que se insere, desde a hora em que dela brotou, personalizada. Ora eu e os meus contemporâneos portugueses somos cucos nascidos em ninho de pintarroxo. Ficaremos ou não.
Para a Jardim e Patty: Sei que a maioria das mulheres me inveja por eu ser também mulher, além de inteligente. Assim me vejo odiada pela minha "classe", porque luto.
Para o Roger e para o Zé: Para o escritor português contemporâneo, o problema da sua iniciação não é o da dificuldade de entrar na prosa existente, mas o sair dela. Isso não é tão simples como parece. Nada.(..)Assim eu sonho o meu primeiro livro. No qual não faria outra coisa senão este ir ao fundo necessário para arpoar a forma possível. A minha forma, evidentemente. No dia em que este primeiro passo tiver sido dado começarei a ser eu. Na prosa como em toda a parte. Ou seja em toda a parte porque com prosa minha, descoberta.
Para o Pedro: De cada vez que eu e o Puto estamos dans l'amour sinto-me fazendo o ponto da situação dos meus contemporâneos.
Para o Romeu: A lucidez do riso face ao absurdo é talvez o grande passo em frente da cultura contemporânea, a invenção da técnica de "parir sem dor" um mundo novo. Sem dor uma treta. A técnica não eliminou a maldição bíblica, mas foi o resultado da festa secreta feita pela mão de Deus na nuca de Adão, quando o deitou aos bichos.
Ainda sobre o riso como forma-fundo da inteligência agredida pelo absurdo: nunca esteve ausente do mundo, mas nunca foi tão necessário agora e por isso dá-se tanto por ele, agora.
Para a Paula: Tudo e todos conspirarão para que eu não escreva. Até em mim encontro traidores à molhada. Só que há (em mim também) uma ponte tensa que me solicita pela passagem estreitíssima.
Para o Pires e Joana: Adios. Socorro! Amor, amor mio. Ya morimos juntos. Ay! Terminad vosotros por caridad este poema.
Para mim: There is singularly nothing that makes a difference in beginning and in the middle and in ending except that each generation has something different at which they are all looking. By this I mean so simply that anybody knows it that composition is the difference which makes each and all of them different from other generations and this is what makes everything different otherwise they are all alike and everybody know it because everybody knows it.
The only thing that is different from one time to another is what is seen and what is seen depends upon how everybody is doing everything.
It is so very much more exciting and satisfactory for everybody if one can have contemporaries, if all one's contemporaries could be one's contemporaries.
There is almost not an interval.
For a very long time everybody refuses and then almost without a pause everybody accepts.
Para quem nos vê: A filosofia grega, porque não era distraída, não permitiu jamais que o movimento fosse demitido de objecto dos seus esforços dialécticos. O filósofo grego era um homem que existia e não se esquecia disso.
Para a Praga: Fina-se o ficcionar.(..) Por ora uma promessa só: saltou a lebre e arranque sobre ela. Vi-a que salta, vou-lhe no encalço. Tremo é se epnso no avanço dela sobre o galgo. Que hesitou até que, decidido enfim a perseguir, terá de engolir distâncias esgotantes antes do gozo inigualável, o de abocanhar. Vai ser corrida demorada, eu fugi-me, logo que saí da minha mãe, como um perdigoto aos trotes pelo mato com meia casca de ovo ainda agarrada ao cu. Acabarei ganhando mesmo assim.
Prevejo: o todo jogo das fintas que a lebre-eu multiplicará para cansar eu-galgo. Contudo. A cada grande, lebracha curva, corresponderá meia pequena curva galga. Até que, reduzidos fôlego e terreno intercalares, chegue o instante fim: reproduzidas nele as linhas da furta derradeira, os meus dentes. Se cravarão em mim, e cão e caça hão-de ser apenas uma massa, só, carne esbofada a escorrer baba e sangue.
Para o Avarento: Falta-nos sobretudo uma orientação geral directa da nossa actividade quotidiana, no sentido de ajustar a casa ao real contemporâneo.
(excertos da Noite e o Riso, Nuno Bragança ed. D. Quixote)