"Para descrever o mundo globalizado, a que também podemos chamar um "Mundo sincrónico", reportamo-nos à imagem do Palácio de Cristal contida no romance de Fiódor Dostoiévski 'Cadernos do Subterrâneo' - uma metáfora que remete para o grande edifício londrino da Exposição Mundial de 1851. Nele queria o grande escritor russo ver a essência da civilização ocidental, como um último concentrado ante o olhar. Ele reconheceu na monstruosa construção uma estrutura devoradora de homens, e inclusive um moderno Baal - um contentor de culto, em que os seres humanos veneram os demónios do Ocidente: o poder do dinheiro, do puro movimento e dos prazeres excitantes-anestesiantes. As características do culto de Baal, para o qual alguns economistas contemporâneos propõem o nome de 'sociedade de consumo', são evidenciadas ainda de modo mais convincente a partir da metáfora do palácio de Dostoiévski, mesmo que queiramos distanciar-nos das sugestões religiosas do autor - tal como das obscuras e brilhantes indicações de Walter Benjamin sobre o 'capitalismo como religião'. O 'Palácio de Cristal' alberga o 'espaço-interno-do-mundo' do capital, em que se dá o encontro virtual entre Rainer Maria Rilke e Adam Smith (..). Se retomámos a expressão 'Palácio de Cristal', foi sobretudo para exprimir a impressão de que a fórmula corrente 'mercado mundial' é pouco adequada para caracterizar a modelação da vida sob o fascínio de relações monetárias que tudo penetram. O espaço-interno-do-mundo do capital não é uma ágora nem uma feira ao ar livre, mas uma estufa que arrastou tudo o que antes era exterior para o seu interior. Com a representação do palácio do consumo a nível planetário, o clima estimulante de um mundo interior de mercadorias acede à linguagem. Nesta Babilónia horizontal, ser-se humano passa a ser uma questão de poder de compra e o sentido da liberdade manifesta-se na capacidade de escolher entre produtos destinados ao mercado - ou produzir autonomamente esses produtos."
Peter Sloterdijk em Palácio de Cristal (ed. Relógio D'Água)