segunda-feira, 2 de junho de 2008

Donna Haraway


Thyrza Nochols Goodeve Estou interessada no momento em que a biologia se tornou para si mais um sistema interpretativo do que uma prática de laboratório. (…) Lembra-se de um momento específico na pós-graduação quando essa relação se tornou particularmente evidente para si?
Donna Haraway (...) Lembro-me de uma discussão com um colega pós-graduando sobre o que era uma célula. Eu argumentava que, num sentido muito profundo, a célula era o nosso nome para processos que não possuem fronteiras que não dependam da nossa interacção. Por outras palavras, as fronteiras são o resultado da interacção e da nomeação. Não é que o mundo tenha sido «inventado», que não existam células, mas sim que o termo descritivo «células» é um nome para um tipo de interacção histórica, e não o nome de uma coisa em si mesma.
TNG O que é que o seu colega achou?
DH Que eu era louca. Mas não estou a falar de abstracção. (…) Existem dois aspectos a serem enfatizados quando se discute biologia. O primeiro é: Nós vivemos intimamente «como» e «em» um mundo biológico. Isso pode parecer óbvio mas eu realço-o para reiterar a natureza quotidiana ou ordinária daquilo de que falamos quando falamos de biologia. E o segundo aspecto, que representa um grande gestalt switch a partir do anterior, é: A biologia é um discurso e não o próprio mundo.

- Sobre a “difracção”* -

DH A difracção é uma metáfora para um outro tipo de consciência crítica no final deste milénio cristão bastante doloroso, empenhada em marcar uma diferença e em não repetir a Sagrada Imagem do Mesmo. Interesso-me pela maneira como padrões de difracção registam a história da interacção, interferência, reforço e diferença. Nesse sentido, “difracção” é uma tecnologia narrativa, gráfica, psicológica, espiritual e política para produzir efeitos consequenciais. (…)
TNG Considerando a sua descrição de difracção, é surpreendente que ela não tenha sido usada antes. E é certamente uma maneira adequada de discutir a sua metodologia – vendo tanto a história de como algo veio a ser quanto aquilo que ele é, ao mesmo tempo.
DH Vou dar um exemplo que veio da prática de ensino e que mostra algumas das maneiras como eu gosto de trabalhar. Há alguns anos, no meu curso «Ciência e Política», tive uma aluna de graduação muito esperta, astuta e politicamente engajada que era parteira aqui em Santa Cruz. Ela fazia parte do movimento de parto doméstico e era bastante contrária ao parto medicamente assistido. Por motivos legais, estava ligada a médicos licenciados, apesar de grande parte do movimento no início dos anos 80 se situar numa zona cinzenta tanto legalmente quanto medicamente. De qualquer forma, ela era muito comprometida com o movimento de parto doméstico e usava alfinetes de fraldas no chapéu simbolizando o parto natural. Ela via o alfinete de fralda como um objecto não-médico, um objecto de uso diário que significava uma relação das mulheres com os seus bebés que não era mediada pela máquina de ultra-som, pelo espéculo.
TNG O alfinete de fralda?! Não percebo.
DH Exactamente. Portanto nós levámos o alfinete para trás em termos de história da indústria do plástico, da indústria metalúrgica e da história da progressiva regulação da segurança. E vimos como o alfinete estava imerso em todos esses aparatos de regulação estatal, e a história das grandes indústrias ligada à formação do capital e assim por diante. Eu não tirei o alfinete do contexto em que ela o usava, apenas o difractei, por assim dizer, para mostrar que ele envolve muito mais significados e contextos que, uma vez notados, não podem ser simplesmente abandonados. Há que registar a «interferência». É assim que eu trabalho, é assim que gosto de trabalhar. Trata-se simplesmente de tornar visível todas aquelas coisas que estavam perdidas num objecto; não para fazer os outros significados desaparecerem, mas sim para impossibilitar a sua redução a uma única afirmação.
(Excerto de um excerto de uma entrevista de Thyrza Nochols Goodeve a Donna Haraway, publicada pela revista Nada no seu nº 11 – 2008)

* A diffraction is the effect that occurs when something interferes with the direct course of light, the difference that occurs. It is not a reflection, replication, or displacement of the same elsewhere. It is something that makes a difference, a process of change. (definição de Lynn Randolph que tem um quadro bem feiinho a que chama Diffraction)

Difracção: passagem de uma onda pela borda de uma barreira ou através de uma abertura provocando, em geral, um alargamento do comprimento de onda e interferência das frentes de onda que criam regiões de maior ou menor intensidade [As ondas podem ser eletromagnéticas, de som ou aquelas associadas a partículas atômicas e subatômicas e a barreira pode ser formada por fendas ópticas ou mesmo átomos numa rede cristalina.] (definição do dicionário Houaiss)