"E neste livro digo que um homem que tem medo de cães não teve a mãe como intermediária. Porque o medo de cães nunca acontece em crianças muito pequenas. Uma criança com um ano tem curiosidade, não tem medo. O medo é o medo transferido, não é o medo da natureza. Quando uma pessoa desenvolve medo de cães, associa o cão ao poder irracional com o qual não quer confrontar-se - não quer, não pode. Provavelmente isto é atávico e muito arcaico. Porque todos os cães vêm do lobo. Deve estar em nós uma memória atávica que associa o cão ao lobo, a um predador.
Mas fala das pessoas que têm medo de cães como se lhes faltasse qualquer coisa.
Há um provérbio: "Casa sem cão nem gato é casa de velhaco." Isto é difícil de explicar, não estudei o suficiente. O cão criou uma relação com o ser humano única no reino animal. Não precisa de alcateia, e quando cai na alcateia transforma-se num animal perigosíssimo. Foi condicionado a precisar da ligação com o corpo humano.
Então a quem tem medo de cães...
Falta qualquer coisa, falta o cão! De um modo geral a espécie humana tem dificuldade em perceber que o cão é uma extensão criada por nós. Nenhuma outra espécie foi geneticamente modificada para amar, servir e ser amado. O cão foi a nossa mão armada antes de haver pistolas. Nesse sentido, é hominizado. Está lá o lobo, mas em nós também está o primata superior, predador e agressivo."
Maria Velho da Costa entrevistada por Alexandra Lucas Coelho in Público