terça-feira, 17 de novembro de 2009

2012


Porque é um “disaster movie”, porque acabou de estrear, porque estou nos States, não resisti e lá fui, sala meio cheia, tivemos direito a recepção privilegiada pelo casal dono do cinema, a mulher volta e meia gritava “all right!” e “iuhu!” e ele distribuía uns brindes (porta-chaves e t-shirts e posters 2012) aos “lucky few” cujo número de bilhete era sorteado. Até que
Ela Now, are you ready for the end of the world?!
Nós Yeaaaah!
Ela All right! Iuhu!
E 2012 começa.

O protagonista (com quem não pude deixar de me identificar), distraído escritor de fraco sucesso (o seu único livro não terá vendido mais de 500 cópias – eis a razão da irmandade), com a profissão paralela de motorista de um milionário russo, ex-boxeur, que se faz acompanhar de uma jovem loira (neste aspecto fico a perder porque nunca conduzi uma limusina), deixou fugir aqui há uns tempos a sua esposa, uma americana olhos verdes e franja em poupa (ainda se usa disto!) que partiu para outra porque ele não largava as teclas do computador – e ela abdicou de tanta coisa pela família e os dois filhos... Ora acontece que a senhora encontrou entretanto a felicidade com um cirurgião plástico que ainda para mais arranja tempo para a família e gosta das crianças, apesar de, segundo parece, não satisfazer sexualmente por aí além. É um tipo porreiro, pode dizer-se, gosta dos putos, faz panquecas para o pequeno-almoço, tá-se bem. Chama-se Gordon, também queria uma família com ela, até porque tem jeito, mas aquilo não parece estar a dar (ele gosta de foder em supermercados e ela não vai na conversa – hélas).
Quando a coisa rebenta, vamos já com meia-hora de filme. Estivemos na Índia, na Casa Branca, numa cimeira G8, o tempo passou depressa e damos por nós com esta família alargada (escritor, duas crianças, mulher da franja e Gordon o cirurgião plástico) a bordo de uma limusina a fugir de arranha-céus a desfazerem-se e crateras gigantes a abrir por todos os lados. A eles vão juntar-se o milionário russo ex-boxeur, a sua loira e um segurança, o Sasha (entre Nicolaj e Sasha optaram pelo segundo nome) que sabe pilotar aviões (o cirurgião plástico, embora pouco esperto em situações de crise, dá uns toques na condução de aeronaves).
A maldade do argumento está, como em todos os filmes catástrofe, nas escolhas que são feitas, ou seja: quem é que morre? E não estou a falar das escolhas nas mortes das personagens secundárias ou simbólicas (Presidente dos Estados Unidos e da Itália, o monge tibetano no Evereste, o pai do Dr. Cientista americano ou os milhões de figurantes), mas sim do grupo restrito que nos conduz pelo filme, ou seja, a família.
Comecemos pelo óbvio: o milionário ex-boxeur russo. Ok. Não é boa peça, já viveu bem, é egoísta, bruto, mau pai, mas ainda tem um sentimento nostálgico por uma senhora ruiva anafadita e feiinha que deu à luz os seus dois gémeos, e sabe muito bem que a loira o trai com o seu guarda-costas piloto, enfim, não é totalmente mau, serve para uns momentos de humor, mas dentro dos vários candidatos é o mais aceitável. Ainda para mais morre a salvar os filhos, o que lhe fica bem.
A segunda vítima, mais óbvia, ainda que relativamente surpreendente, é a loira, a tal que anda com o milionário e com o piloto guarda-costas Sasha (esse morre bem cedo) e que por acaso até fez uma operação às mamas com o cirurgião plástico Gordon, não porque quisesse mas porque o Sasha a pressionou (não lhe chegava). Morte terrível a desta jovem, depois de salvar o seu caniche (vá lá) e de ter feito um manguito ao milionário. Ainda cheguei a pensar que ficava ela com o Gordon cirurgião plástico para abrir caminho à reconciliação dos ex, mas qual quê: morte por doloroso afogamento.
A terceira morte do grupo, a última, é a do próprio do Gordon cirurgião plástico que arrisca a vida para salvar os restantes. E com esta morte a reconciliação dos pais separados vê-se desimpedida de obstáculos, o que lhe retira o dramatismo, pois no fundo até é uma boa notícia. Os miúdos gostavam dele, mas entretanto no meio das aventuras o pai escritor aprendeu umas coisas, tornou-se mais pai, mais atento aos filhos e esposa, mais familiar, mais herói também, largou o computador, de maneira que o outro já não está a fazer nada no filme e toca a matá-lo numas rodas dentadas gigantescas (provavelmente a morte mais cruel destas três, apesar de não ter direito a sangue – aliás neste filme catástrofe, como em muitos outros, não se vê uma gota de sangue… ou estaria eu distraído?).
Analisando então estas três mortes, resultado de três escolhas dos argumentistas, poderemos concluir, no que à narrativa familiar diz respeito, os seguintes pontos:
1. Não faças operações plásticas. Seja como médico, seja como paciente.
2. Nunca cases com uma mulher divorciada e com filhos. Trata de encontrar a tua mulher e construir a tua própria família. Por outras palavras: get a life!
3. Antes de morreres, sê um herói (vais ver que custa muito menos).

É por isso que discordo em absoluto com aqueles que dizem que o argumento dos filmes catástrofe não interessa para nada. Claro que interessa. E só é bom se conseguir ser tão divertido quanto a acção e os efeitos especiais.

Mas do argumento 2012 há mais a concluir. É que, para além da narrativa individual, familiar, social, para além da pequena história, um filme catástrofe dedica-se igualmente a uma narrativa colectiva, política, que no final se cruza com a familiar para em conjunto ditarem a moral da história.
O G8 é personagem no épico 2012 e os que melhor se comportam são os presidentes (e não as nações, atenção) dos Estados Unidos e da Itália (!), visto que são os únicos que, podendo, não abandonam a população e se deixam ficar abdicando do luxo das arcas de Noé providenciadas pelos chineses (quem mais consegue construir em 4 anos os barcos que irão albergar os sobreviventes? os eficientes chineses, claro está).
O presidente dos Estados Unidos (versão Obama um pouco mais velho – rezam as crónicas que chegou a estar escrita uma versão Hillary) junta-se às operações de salvamento e morre engolido por um tsunami. Já o italiano junta-se aos católicos numa reza colectiva em terras do Vaticano, falecendo esmagado, com a sua esposa e os seus dois rebentos, pela arquitectura papista.
Os russos parecem maus mas acabam por se portar bem mais para o final e os africanos e latino-americanos não existem e portanto o seu desaparecimento não é trágico (a morte da não-existência não é morte). Apesar de tudo, ficamos a saber no epílogo, será em África, berço da humanidade, que tudo recomeçará. Africanos nem vê-los, mas lá chegarão os europeus e asiáticos para repovoar, num neo-colonialismo que rima com outros séculos.
Os indianos são esmagados, mesmo que a descoberta do mal que aí vem tenha sido feita por um deles, um sábio cientista amigo do Dr. Cientista americano que, em condições económicas difíceis e trabalhando numa mina bem funda e sob temperaturas altíssimas, descobre que o Sol se descontrolou.
Nesta macrovisão (confusa e inconsequente, Graças a Deus), 2012 propõe finalmente uma ideia (provavelmente A Ideia) desencadeada por uma decisão que urge tomar na última meia-hora de filme, depois de uma das arcas, destinada aos milionários mecenas que pagaram o seu bilhete e assim subsidiaram a construção deste projecto de salvação da humanidade, não ter sido reparada a tempo: deixamos entrar nas Arcas, que estão prontas a partir, os que andaram a suar para as construir (proletariado) e os que pagaram a sua construção (milionários mecenas) ou fechamos as portas e ficamos a vê-los morrer?
Depois de um discurso inflamado do Dr. Cientista americano, cujo convincente argumento é “Como vamos poder olhar uns para os outros no futuro recordando para sempre que o nosso renascimento assentou num acto cruel e egoísta”, o G8 amolece e o povo (ricos e pobres) pode entrar. Assim se parece dar a este final, que é também um recomeço, a esperança de uma humanidade “civilizada”, uma humanidade assente na solidariedade. E é então que se pode concluir:
1. Os americanos não são todos bons mas há uns que sim e esses valem muito.
2. Os homens não são boa gente mas há uns que sim e alguns desses morrem e outros não.
3. Os continentes pobres não existem e a Oceânia também não.

Resta, para a despedida, e já depois de abandonarmos a sala, somar estes três pontos aos outros dois mencionados em cima para obter o resultado final:
Não faças operações plásticas porque os americanos não são todos bons mas há uns que sim e esses valem muito, seja como médicos, seja como pacientes, embora os homens não sejam boa gente e a Oceania também não, portanto, antes que uns morram e outros não, sê um herói (vais ver que custa muito menos), trata de encontrar a tua mulher e construir a tua própria família e lembra-te que os continentes pobres não existem. Por outras palavras: get a life!
Iuhu!