quarta-feira, 29 de junho de 2011

Terceira Idade

C: Onde é que foi que estávamos enfiados em lama até ao pescoço?

S: Irão.

C: E tu a espirrar sangue por todo o lado e eu também e a dizer para mim: não quero morrer sozinho. Não quero morrer sozinho, cheio de buracos e de lama. Quero morrer com uma coisa que valha a pena, Bruce. Quero morrer com uma mulher. Quero morrer com alguém que goste de mim. Não quero morrer por um homem, quero morrer ao lado de um homem. De um amor.

S: Estou preocupada com a minha reforma. Achas que ainda vai haver dinheiro no final do ano? Estou cada vez mais velho. O que é que eu vou comer?

B: Vamos tratar de negócios. Quem é que quer trabalhar?

S: Eu estou reformado. Mas faço um trabalhinho. O último trabalho.

C: Queres ser a minha mulher? Vamos reformar-nos juntos. Vamos viver para a Florida.

B: Não. Vamos fazer uma comédia de guerra. Arnold, estava à tua espera.

A: De mim?

B: (aponta para S) Não, dela.

S: Eu não sou o Arnold.

B: Então sou eu! Mas se sou eu, não posso estar à espera de mim. Não faz sentido. Gramaticalmente. Na frase. Na vida. Sou uma pessoa sem sentido. Nem personagem nem pessoa. Que medo! Quem é que eu sou? Isto não é suposto ser uma comédia? Então porque é que eu não me estou a rir?

C: Não é por tu não te estares a rir que isto não é uma comédia. Pode ser uma má comédia. Mesmo que ninguém se ria, mesmo que ninguém se tenha rido uma única vez, continuas sem poder dizer que isto não é uma comédia. Não só porque nada te garante que no futuro alguém não se venha a rir como também, e como consequência, não podes definir a comédia pela sua capacidade de fazer rir. É um equívoco. És um equívoco. E é por isso que tens de te rir. É por isto ser uma comédia que tu tens de te rir. É a comédia que te valida a ti e não tu que validas a comédia. Ri-te! Tens de te rir. É a comédia que diz.

A: Mas não tenho vontade de rir.

B: Arranja, Jolie.

A: Mas eu já não sou a Angelina Jolie.

B: Angelina Bastos? Lopes?

C: Reformei-me. Há anos que não mato pessoas. Há coisas que não se esquecem. Palestina, Cazaquistão, Angola, Senegal, Síria. Sangue. Braços soltos. Olhos perdidos. Dedos dos pés. Estou a ter um déjà voodoo. Porque é que os velhos têm de recordar. Permanentemente. Não quero. Quero pensar o futuro. Quero morrer com uma coisa que valha a pena, Bruce. Quero morrer com um homem. Quero morrer com alguém que goste de mim. Não quero morrer por uma mulher, quero morrer ao lado de uma mulher, é isso que quero. Ser jovem.

B: Queremos todos. Mas temos de voltar à comédia que não existe. Não nos podemos desviar do nosso caminho que não existe. O tempo passa. O General Garza é um homem complexo. E bem armado. Não vai ser fácil entrar na fortaleza. Vamos precisar de um avião, muito poder de fogo e… alguma sorte. Partimos daqui a duas horas. Já partimos.

S: O meu nome é General Garza e vocês não podem estar aqui.

C: Calma, se começas logo a ficar furiosa no princípio da cena, como é que vais acabar?

S: Não posso dizer o que me vem à cabeça? Quem é que escreveu isto? Quem é que escreveu “Não posso dizer o que me vem à cabeça?” Mas quem é que ainda se dá ao trabalho de emancipar o actor? O actor não tem de se emancipar. Tem de deixar de existir. Com eu e tu e este texto. Porque é que eu não me estou a rir? Só me apetece berrar! O meu nome é General Garza. Sejam bem-vindos à nossa ilha. Este bigode deixei-o crescer para o filme. Sou um actor do método e nunca seria capaz de representar um General sul-americano se não tivesse um bigode. Quando representei um soldado afro-americano na guerra do Iraque, fiz uma plástica para mudar a cor da pele.

C: E qual é o teu próximo projecto?

S: O meu próximo projecto é lutar por uma reforma condigna. E morrer antes que acabe o pilim.

C: Já ninguém diz pilim.

S: Lagarto, lagarto, lagarto. Fiz uma implantação de cabelo grisalho e escavei as rugas na cara com a ajuda de um bisturi.

C: Mas não és um soldado sul-americano?

S: Sou um actor do método. Já não sei quem sou. Isto de mudar tantas vezes de personagem confunde-me o BI. O que é que eu disse?

B: Mickey, estás cada vez mais lindo. A idade dá-te vida. Há quantos anos é que não nos víamos?

S: Desde a Argélia.

B: Foi assim há tanto tempo?

S: Dormimos na mesma tenda.

B: Foi.

S: Não vais dizer mais nada?

B: Preferia não. As memórias merecem o silêncio.

S: Consegues sempre dizer qualquer coisa que me desarma. Vamos para a cama. Reviver. Amo-te. Odeio-te. Adoro-te. Detesto-te. És lindo. Horrível. Não consigo decidir. Desarmas-me.

B: Mickey. Tem calma. Já não temos idade para isto. Desde que cheguei à idade da reforma que prefiro aproveitar o que é bom e evitar o que é mau. A idade é só vantagens. Mas quem é que escreveu isto? Eu não falo assim.