O texto que se segue foi escrito pelo Zé para o programa do espectáculo Platónov em cena no T.N.S.J.
Tenho muito orgulho em ser seu amigo (embora neste momento me tenha tornado mais amigo do Dieter) e gosto muito deste texto (já o li nove vezes, e confesso que do programa do espectáculo também já li cerca de nove vezes a biografia dos storytailors).
i "love it" i "love it /when" you're "mad" peaches dixit not totally dixit
O Teatro de Platónov
O primeiro título de Platónov, aquele que existiu por momentos na correspondência de Tchékhov, era uma palavra composta que, segundo percebi, se traduziria como Os Sem Pai (“Bezotcovščina”, em russo, ou, em alemão, onde fui buscar a referência, “Die Vaterlosen”). Disto passou para Peça Sem Título usando-se hoje sobretudo o nome do protagonista para designar o texto.
Prefiro por agora Os Sem Pai porque me ajuda a conduzir a leitura para onde mais me interessa. E começo pela referência neste título ao romance de Turguéniev, Pais e Filhos (1862), que assim se faz mais explícita. Não podemos deixar de comparar Platónov a Bazarov (o estudante de medicina de Turguéniev), tal como não podemos deixar de ver na peça de Tchékhov as influências de uma ideia do niilismo que Turguéniev popularizou e que aqui serviram de ponto de partida para uma outra coisa, aquilo a que, mais uma vez por conveniência, chamaria de “negacionismo”. E uso esta palavra pensando numa passagem de Marcas de Baton de Greil Marcus, raro e saudável livro que este mês me passou pelas mãos, onde se junta os Situacionistas e os Sex Pistols, Guy Debord e Johnny Rotten: “a negação é o acto que torna evidente a toda a gente que o mundo não é o que parece”1. Mas também, pouco mais à frente: “o negacionista reconhece que, para os outros, o mundo é o que parece.” Palavras justas para, a meu ver, caracterizar Platónov.
Uma peça sem pais (e sem título, duas negações de alta patente) e uma personagem órfã, procuram um outro mundo, um outro modo de estar, tal como Tchékhov começava a procurar um outro teatro. E por isso nele vejo um dizer “não” como princípio de uma redefinição contida em perguntas como esta, proposta pelo protagonista a meio do Segundo Acto: “Porque é que não vivemos como podíamos viver?”
É isto que leio em Platónov (agora sim, posso regressar ao título desta tradução e produção portuguesas): a abertura, com um “não”, de um outro espaço. “Amanhã fujo daqui”, diz Platónov, “fujo de mim mesmo, sem saber para onde, fujo para uma nova vida! Eu sei o que será essa nova vida!” Um “não” afirmativo que possibilita um outro lugar. Ecoam as palavras de Slavoj Žižek sobre Bartleby (e quanto a mim Platónov está mais próximo de Bartleby do que de Bazarov): “Bartleby não nega um predicado; antes afirma um não-predicado: não diz que não o quer fazer; diz antes que prefere (quer) não o fazer. É assim que passamos da política da ‘resistência’ ou ‘protesto’, parasitária daquilo que nega, para uma política dum novo espaço fora da hegemonia e da sua negação”2.
Será este o heroísmo de Platónov? A tentativa de mudar o paradigma, de baralhar as convenções, de preferir não. Não já a alternativa dicotómica ou maniqueísta do príncipe da Dinamarca (“ser ou não ser”) mas um “terceiro termo”3 , espécie de suspensão onde entrevejo, num gesto de, admito, desproporcionada extrapolação e com um provável excesso de optimismo, um outro Teatro. Talvez Platónov esteja mais perto, por ser um “sem pai”, daquela “hora zero”, em que se pode cantar “No future for you”, hora sem nada à frente ou atrás. Talvez Platónov seja aquele que nos poderia fazer sair do espectáculo acompanhados por estas palavras de Raoul Vaneigem num livro (Traité du savoir-vivre à l'usage des jeunes générations) de uma outra geração, a dos meus pais:
“A representação acabou. O público levanta-se para sair. É tempo de vestir o casaco e ir para casa. Volta-se o olhar: já não existe casaco, já não existe casa”4 E, idealmente, gostaria de acrescentar, inspirado por Platónov: Já não existe Teatro.
José Maria Vieira Mendes
1. Greil Marcus, Marcas de Baton, Frenesim, Fim do Milénio, pp.14-15
2. Slavoj Žižek, The Parallax View, The Mit Press, 2006, p.381
3. Agamben, Bartleby – Escrita da Potência, Assírio & Alvim, 2008, p.32
4. Greil Marcus, Marcas de Baton, p.80