terça-feira, 22 de julho de 2008

VU


Filme: Namban Japan
Local: Anfiteatro FCG - Por cima do metro, por baixo dos aviões, entre os patos e os autocarros.
Companhia: Amigos e brigada do reumático
Género: "Vanguarda-me aí um barril de petróleo" incognito dixit
Estrelas: Céu farto, teatro parco
Duração: 5 minutos cada filme. Curto para o do André, suficiente (-) para a maioria.
Argumento: Os meus amigos sabem que eu não sou grande fã de duas coisas: jazz e documentários. Em relação ao jazz pronunciar-me-ei quando julgar necessário; em relação ao segundo, chegou o momento.
A pouca paciência que tenho para o documentário deve-se a uma estabilização no formato nostálgico da coisa. Basicamente não tenho paciência para ver pontos de 'vu' de pessoas parvas que não tiveram paciência para viver/cometer 'erros' na sua altura/no seu tempo, e tão pouco pontos de 'vu' de pessoas fracas/débeis que não têm força de ir em frente. A nostalgia é um desses mecanismos totalizadores e ridiculos (sublimes, diria ZZtop) que não nos permite integrar o que sabemos já estar integrado. Como exemplo: ter nostalgia de 'um amado' é no fundo saber que já não o temos (ou no pior dos casos, que nunca o tivemos). E sobretudo o que não me agrada nada na lógica arquivista fin de siècle de registar todas as curiosidades etnológicas como história da história da história é:
1) pensar-se que vivemos no melhor dos tempos (e esta lógica que refiro é uma lógica dos anos 90, nem sequer é a dos 2000; mas quem está no poder mediático são ainda pessoas de ascenção rápida nos 90, auge de uma euforia estética inaudita).
2) o conteúdo validar o objecto (objecto que pode ser evento eventualmente i.e. como se essa tentativa pós-histórica de historizar rizomáticamente valesse pelo Acto de Realizar i.e. a Arte como todo). Os objectos artísticos não têm de ter nenhum valor social ou eficácia de ensinamento, ou produto que fortalece conhecimento, nisto discordo claramente de... well, todos os programadores?!?
3) que ainda por cima o conteúdo dos documentários seja tutelado invisivelmente pela questão da busca do Real. Algo que daria pano para mangas, e que deixo a cargo do Rogério e do Zizek.
Todos os documentários que eu vi no evento "Tão perto/Tão longe" (pelo que sei, alguns ficaram de fora) sofreram disto... excepto o Namban Japan de André Godinho. É teu amigo, dirão uns. Ao que eu respondo, e é por isso mesmo que é meu amigo. Se o que faz fosse uma merda, eu deixaria de lhe falar.
Posso mesmo dizer que por padecerem tanto destes mesmos sintomas, à excepção do Namban Japan não considero nenhum dos outros documentários Arte.
Uma cisão/brecha, uma potencial partage du sensible: é isto a Arte.
Por isso mesmo, às vozes que tchan tchan nomeavam o documentário da Margarida Cardoso como 'o tal' o 'number one' (aquele que mostrava uma grande seriedade na resposta dada ao convite, e maturidade na qualidade do que foi apresentado) eu só posso responder que ela padecia 3x mais destes sintomas. Pois sabe-se que estes sintomas não se mostram/revelam naquilo que se conhece/que conhecemos, mas no que se faz, no que se cumpre, na praxis, no que se comete. Neste sentido todo o seu metier está profundamente formatado por ditaduras invisíveis (só posso lamentar profundamente quem não consegue ver isto): os planos, o ritmo, o conteúdo (a historieta metafórica de proliferação/genealogia, o multicultural LOCAL escolhido, a dicotomia natureza brutal vs. humano-magnanime-que-
deseja-pujança-equivalente-à-da-ilha, o não questionamento do convite, o não questionamento da arte) etc e tal, enfim tanta coisa por onde pegar que é só ter vontade. O que custa mais é que "se repetem as asneiras" zé dixit, e os noventões e noventonas de vinte e de trinta e quarenta e sessenta anos de idade vão à boleia. Repetindo os percursos, as curvas e os destinos. Às vezes também o brand dos cigarros.
Voltando a Namban Japan e antes que me irrite mais e começa a barafustar com este vazio cibernético (acima de tudo, o tolo para quem estou a escrever sou eu mesmo, zztop dixit).
O documentário do André não é formalmente novo (isto seria um critério se fossemos modernos).
O documentário do André não nos revê numa historieta comum (isto seria um critério se fosses pós-modernos).
O documentário do André vê (isto é um critério contemporâneo).
Tal como o Flaherty via, tal como o Vigo via, tal como o Vertov via, tal como o Rouch via, tal como o Warhol ou o Morrissey viam, o André vê (já voltarei ao ver e ao pestanejar). Isto implica desejo (e não registo como fazem Moore e a Sic reportagem) e um tocar na tal fantasia que desaparecerá fulminando o bonding social i.e. que queimará as mãos i.e. impossibilitará pragmatismo na tal sociedade alienadamente activa. Estando consciente da sua mortalidade e das suas limitações o autor de Namban Japan não deixará de exercer a sua função de partagador du sensible.
Tudo começa por um convite: ele sabe que existem dois mecanismos de resposta. Ou responde 'naturalmente' com cinismo (respondendo como todos os outros participantes responderam): defendendo publicamente algo em que não acredita intimamente; ou responde 'pseudo-revolucionariamente' com ironia: troçando publicamente com algo que intimamente (muito no lá no fundo) acredita. Em jeito de 'negação da negação' eu diria que ele diz exactamente ao publico o que deseja acreditar/o que acredita no intimo. E nós temos um nome para isto. Ideologia. A sua materialização é a Estética. O seu intuito é a Megalopsychia. A vocalização na realidade do que se 'sofre' no intimo (o sofrer não é necessariamente de dor) pode ser também chamada de universalismo, ou de tendência universal, mas isso fica para outro dia.
Se todos os outros documentários funcionam como os 'gestos vazios' funcionam (significantes que possibilitam a ordem social), como exemplo é possível imaginar-mos a resposta de cada um dos realizadores à pergunta "O que queres dizer com este filme?":
Os cínicos responderiam que uma obra de arte fala por si.
Os irónicos responderiam com motivações sociais (igualdade, liberdade) e mea culpas (capitalismo, eurocentrismo).
com Namban Japan, a possibilidade de colocar esta pergunta não existe porque não existe essa Necessidade. Não existem dúvidas porque nem sequer somos achados na matéria. Namban Japan é ideologia pura e dura. O autor sabe que poderá morrer como Robespierre. A verdadeira arte é Beuys-paradigmática. Está ligada com a vida. São indissociáveis. É uma grande chatice. Enquanto uns levantam o chapéu às donzelas que passam inconscientemente em direcção a um precipíco que as engravidará levando-as a uma possível engorda, o André em jeito de Jeff Wall expõe-se ao ridiculo assumindo a função de stumbling block (não protege de uma eventual queda, pelo contrário, faz cair mais rapidamente na Real. Isto tudo para quem quer, claro está, os inconscientes param medrosos perante o muro. Ele não é assim tão demente para obrigar todos os mortais a cair de vez. Isso fica para 'Prometeu, o Pretencioso'). Tal como a arte, a Ideologia consome-se gratia sui. Não é para quem pode, é para quem quer. Não tem respostas, tem alternativas que levam a uma queda provável e eficaz. Mas de um mundo desideologizado nasceu o André (aliás, ambos nós). "E nós não temos medo" zé dixit, porque sabemos fazer amor (quanto a este ponto também voltarei).
Namban Japan reconhece o tempo como um todo contínuo (eu não sei quando foi filmado sabendo que foi filmado no seu próprio tempo) i.e. há um reconhecimento histórico no embate com o presente ou nos restícios do agora; Namban Japan existe (no sentido em que é verdade) num espaço de ficção realmente (ou o Real mente/de mentira e de mental) contínuo, logo, todos os multi e inter culturalismos deixam de ser sintomas e passam a ser, well, nada, vida vá lá, é isso, "é a vida, o que é que se há-de fazer? Viver." sg dixit; Namban Japan não pode ver mais num abrir e fechar de olhos do que lhe é possibilitado por esse mesmo abrir e fechar de olhos (formalmente isto é das coisas que me impressiona mais no trabalho do André, sentir o seu pestanejar calmo na cabeça em rotação; em cada abrir de olhos um detalhe novo, aproximado ou distante, noutro local ou no mesmo) i.e a grandiosidade do que lhe é grande e não a grandiosiade ditada pela fantasia social numa invisibilidade constrangedora.
Se em Riders havia um documentário decalcado da ópera (aí começa a primeira das fodas de Godinho), em Namban tudo começa com uma discussão. Mas como para o André nunca há discussões graves (nos grandes assuntos nada mais é achado na conversa do que a própria matéria, é esta a sua dialética negativa) nada é melhor do que foder para resolver o assunto. A erotização da arte é uma coisa muito bela, já dizia a Sontag nos anos 60. E assim Namban fode com Japan. Sem jeitinho. Em estilo bárbaro (se bárbaro significa vocalmente gaguejar, podemos dizer que visualmente significa pestanejar). E o amor resolve a sensação individual de se ser excluido nalguma coisa pelo outro, excluindo tudo o que o rodeia.
E depois vem o filho.
E depois vem a engorda.