quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Censurado

A crítica: aqui.

A minha resposta.
D.R.

“Senhores, claro que têm toda a liberdade para publicar a vossa critica – mas senhores, tenham também a liberdade de aceitar que vos alinhemos contra uma parede e que disparemos sobre vós.”
Resposta de Lenine aos Mencheviques

Os críticos estão sempre a desejar respostas dos artistas. Pela primeira vez respondo a uma crítica, aquela de Cristina Fernandes publicada no dia 24 de Dezembro de 2008 com o título “Nem só de música vive a ópera”, por a encontrar pessoalmente agressiva, insultuosa e com uma vontade (ou capacidade) de análise artística bastante primária. E respondo no mesmo tom em que fui insultado, por uma simples razão: temo pelo Futuro (não pelo meu, atenção, tenho a vida mais que assegurada).
As erratas deste jornal são comummente intituladas “O Público errou”. Neste caso podemos dizer: o Público errou... mas sob a forma de Cristina Fernandes e do seu texto.

1) Começa a crítica do espectáculo por definir o meu texto do programa (paradoxal!) de “pretensioso”, pleno de “intenções interpretativas” que ofuscam, revelando “uma temerária ambição”. Folgo em saber que a autora tentou encontrar no meu texto (pretensioso? Haveria de ler um livro de Hegel! Ou Kant!) respostas. Mas quem Pensa sabe que não há respostas. E há uma razão para isto: ser-se humano implica um investimento de sentido nas coisas. Quem busca respostas como se existisse o grande Manual de Instruções não é um ser humano na sua plenitude cartesiana. É um devoto. E todos sabemos o que os devotos têm feito à humanidade ao longo da história. Não culpe o texto de ser pretensioso por não ter tido capacidade de o entender e concentre-se no espectáculo.

2) Passa dos insultos pessoais para o boicote sempre com o ódio na mira (e recorrendo a muitas questões que já desde Heidegger julgávamos respondidas). Começa por definir a cenografia como sendo “muito pouco atraente” (e se é verdade que o Belo deveria ser Medida-Mestre do mundo, também é verdade que tanto a autora como o seu texto nunca passariam no teste), e acaba por nos dar um conselho de resolução cenográfica para que o espaço “funcione”: este deveria ter delimitações “por patamares”. Obrigado. Mas quem Pensa sabe que a Arte não tem de funcionar, de ser eficaz. Ela consome-se gratia sui. É tal história do investimento de sentido. Eficácia é um critério para indústrias e para a secção de Economia. Não somos uma fábrica.
Quanto aos conselhos, que pena não ter prosseguido. Tenho a certeza que aos “patamares” acrescentaria elevadores de cena, velas e purpurinas. Não, Cristina Isabel, não somos pirosos. Também lamentamos. Imaginava “uma casa sombria”, em cena? Só que a Cristina não deve/tem de imaginar. E muito menos segundo imaginários estafados e obedientes a uma ditadura invisível de arquétipos. Bem sei que assim é mais fácil esquecer-se de quem é, mas acontece que se nos esquecermos todos de quem somos tornamo-nos zombies. Zombies é coisa de que gosto, sim, mas nos telediscos do Michael Jackson. Em “Outro Fim” a Cristina não tem de imaginar, deveria reflectir. Mas como não consegue, imagina.
Como se não bastasse, repete idênticos erros formalistas quando por exemplo se refere aos papéis, que por vezes cobrem a cara dos intérpretes, como “simbologia”. (Mas a Cristina sabe alguma coisa em particular ou é tudo em geral? Simbologia? Isso é coisa de Faculdade). Quanto muito poderiam ser símbolos ou metáforas, mas nem sequer disso se trata (não lhe vou explicar porquê, mas poderá ler em qualquer livro de semiologia). São só mesmo papéis colados na cara. E são ineficazes, são, ou seja, não significam o que a Cristina quer que signifiquem mas podem significar o que a Cristina quiser que signifiquem. (São muito feios os críticos que culpam os criadores demitindo-se de ter qualquer tipo de responsabilidades nas opções tomadas).
Continua o seu “lamento” referindo a não credibilidade das personagens, que se movimentam espacialmente “sem motivo aparente”, que até “a didascália do libreto é pouco respeitada”. Pigarreio e concluo destas ideias: eis a razão por que Cristina Fernandes nunca se tornou uma intérprete musical (o que para nossa triste sorte resultou que viesse a escrever neste jornal).
Lição número um: Nada no mundo é linear, e sobretudo no acto de criar é a megalopsychia que lidera. Música, literatura, teatro linear são observáveis nos produtos artísticos que passam a mão pelo pêlo, tanto na Ópera-Infantil-Para-Adultos como nos livrinhos de auto-ajuda, na literatura light, no Teatro de Copa, no universo Amélie Poulain. Ainda por cima, desinformada, Cristina acusa o encenador de desrespeitar as didascálias, de lutar contra a música e contra o texto. Primeiro, fique sabendo que em “Outro Fim” ninguém fez nada nas costas de ninguém. Segundo, ao contrário de um pianista-automático (aquele que confunde “interpretar” com “ser um computador”) para um encenador as didascálias são texto a ser interpretado. Só para os tristes e necessitados de ilusão é que as didascálias são realidade linear a cumprir. Nope. Relaxe, é tudo literatura de grande qualidade. É tudo passível de ser interpretado.

Finalmente, e para se provar a dimensão e qualidade desta crítica, a Cristina nem sequer teve a capacidade de analisar a prestação de Madalena Bóleo sem utilização de coscuvilhice e preconceitos (neste caso, padrões de eficácia hegemónica). Segundo a Cristina, o que interessa ao leitor do Público, é que houve uma substituição no elenco (voz, interpretação, corpo, etc., nada disso interessa). Mas o Público é um tablóide musical? Ou será que a falta de conhecimento, a ignorância limitadora, a obrigam a encher linhas com estas informações? Enfim, querido Público, a vossa Eduard Hanslick não domina conceitos como site specific, só analisa formalmente (tem o seu próprio catálogo de padrões) e não tem capacidade de sabedoria conceptual.

3) Acaba o texto com uma ameaça. Cristina gostaria que a ópera fosse remontada numa nova encenação. Eu concordo consigo. E acrescento: deveria ser a Cristina a encenar. Claro que a Cristina nunca iria aceitar encenar. Por uma simples razão: tem medo, pois sabe que como ser humano (na sua vertente artística, entendamo-nos) é absolutamente inútil.
Mas citando os Roquivários, vou ter também o infortúnio de lhe dizer: Cristina, não vai levar a mal, mas (na crítica) pensar é fundamental.

André e. Teodósio