quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Hau Gob

Caro Diário,
hoje pareceu ainda mais longo. Será possível? E quase que nos corria bem por completo não fosse o tiro ao lado no espectáculo da noite. Desanconselhamos vivamente, tentando não guardar rancor, mas ainda assim com alguma
impaciência, um espectáculo da companhia Two Fish em colaboração com uma simpática e silenciosa (estou a ser metafórico muitafórico) pop band. Foi no Hebbel am Ufer, sala número 3, durou duas horas com intervalo e vimos quatro performers em bailarinos a fazer aquele número do epiléptico que eu julgava definitivamente extinto, bem como o “deixa-me-tocar-te-ao-de-leve-para-perceber-quem-és” e outras coisas de uma dança contemporânea do passado. Podia ter-se dito, nesses ditos anos antigos, coisas assim sobre o espectáculo: o olhar dos corpos em movimento perfura a plateia; ou: os movimentos transmitem a impossibilidade da pele perante a musicalidade; ou: pernas e braços à procura da união, à procura da unidade, da comunhão utópica face ao individualismo da fisicalidade. Talvez se pudesse ter dito isto. Mesmo assim, tenho dúvidas. E nada como chegar ao Motel One para esquecer as dúvidas e repousar a vista na lareira televisiva.

Voltemos porém ao princípio do dia: encontrámo-nos com o Simon e a Eva dos Gob Squad e que amena cavaqueira foi. Partilhámos o mundo e gargalhámos em sintonia. Ficámos de nos encontrar um dia destes num sítio destes. Nós preferimos Berlim, até porque podemos ir às compras. Comprar casacos de inverno azuis, galochas prateadas, camisolas, ténis, blasers, meias, gorros, cachecóis, tudo e tudo e tudo. As lojas sucedem-se. As montras chamam-nos. O magnetismo. A atracção. A diversidade. A diferença. A excepção. A novidade. A falta de tempo. O encontro com o Mathias Lilienthal do Hebbel am Ufer. Chamemos-lhe bulldog, mas também guru, mas também homem que mete medo. E, imagine-se, programa e dirige um teatro com três salas onde passa muita coisa que interessa. “What kind of fucking theatre company are you” foi a first question do nosso encontro. E à medida que a conversa avançou foi amainando, chamou a sua programadora de teatro (“Anda ver isto que interessa”) e acabou a apontar um reencontro, quem sabe em Rennes, quem sabe noutro local perto de si. Nós preferíamos Berlim. Ainda não consegui comprar as calças. E a semana está a chegar ao fim. Amanhã, finalmente, vamos ver René Pollesch. Deixo um pedaço do texto para quem quiser vir ver.


S: No filme de Breloer, “Speer e ele”, há certas coisas que não podem ser mostradas ou ditas. E que coisas são essas? Não podiam por exemplo mostrar o Hitler com o seu pastor alemão Blondie. Não dá. O Breloer não podia. Noites de insónia para o Breloer porque não era possível. Isto porque quem fazia de Hitler era o Tobias Moretti e agora imagina um pastor alemão ao lado do Tobias Moretti. Remete-te imediatamente para o Inspector Rex. Mas este problema é sempre tratado como marginal. E no entanto não é nada marginal o facto do Tobias Moretti não poder ter um pastor alemão, como a Blondie do Hitler, ao seu lado porque remete imediatamente para o Inspector Rex e o Breloer não quer que isso aconteça. E o Tobias Moretti também não. Ele não quer a sua vida. Ele quer o Hitler. Pelo menos naquele momento. Só que eles não reparam nos problemas que envolvem isto da Representação: São todos afastados da sua própria vida e deixaram de a poder utilizar! Isto está a rebentar pelas costuras e eles não vêem. Não querem ver que há aqui um problema.

C:
O Moretti acha-se portanto separado de si próprio. No fundo não podem falar de mais nada. Sobre os seus problemas não podem. Têm sempre de se ocupar com outros problemas. E é assim que se vêem separados de si mesmos. Estão sempre a pensar do ponto de vista do consumidor e a si próprios enquanto mercadoria. Mas será que temos sempre de pensar do ponto de vista do consumidor? Têm de ter a generalidade em vista? Tem de ser compreendido pela generalidade? E o que acontece é que se deixa de conversar sobre tudo o que é especial. Inclusivamente sobre o que é especial em cada uma das pessoas do público. Ou seja, no fundo não estão a pensar no público.

V:
Há 1000 pessoas que têm um pastor alemão, porque é que ele não pode ter um?

C:
Pode-se fazer de inspector e depois de Hitler, mas aquele que faz de pastor alemão faz sempre de si próprio. É sempre, universalmente, um pastor alemão. Um pastor alemão raramente é feito por um caniche! Ou uma mulher por um homem.