3ª sessão
Ele, Ela e o Outro no 10º andar. Local: Varanda da casa do Outro.
O outro – Depois de André finalmente ter posto isto a funcionar.
Ela – Primeiro eu tenho uma questão. Como é que ele se vai chamar? É Ele, Ela e…
Ele – O Outro. Zé tu és O outro.
Ela – Gosto muito O outro!
Ele – Bom , ontem dividimos os grupos. Lemos as cenas do Zé.
Ela – Sim. Também lemos as entrevistas do Lars von Trier e da Marina Abramovic e depois dividimos os grupos. Temos neste momento quantos grupos? E pronto a coisa começou a andar. (Risos) O trabalho duro azeda.
Ele – Diz lá tu Zé, daquilo que tu viste…
O outro – Eh pá, eu cheguei lá, eles leram um bocadinho das cenas, foi muito giro ouvir as cenas em estreia absoluta e… e… e falámos um bocadinho sobre o que era a minha adaptação, não foi? Eles fizeram umas perguntas sobre isso.
Ela – Sim que era umas coisas em que eles andavam a empreender desde o início.
Ele – Mas mesmo assim não houve tantas perguntas como…
Ela – Sim porque eles estavam com vergonha. Não viste um que tratava o Zé por você.
Ele – Não!
Ela – “… O seu texto..”
O Outro – Era… pois, nem percebi.
Ela – Eu pensei: olha que bonito chama-se a isto respeitar o autor. É verdadeiramente respeitar o autor. (Risos) Achei que eles ficaram um bocado envergonhados. Mas depois tu andaste lá por uns grupos. Eles chamaram-te.
O Outro – Sim. E reparei que havia muita gente… (surgem vizinhos na varanda ao lado) ‘Pera aí que eu tenho de ir falar com os meus vizinhos.
Ele – Vamos fazer uma pausa.
(Pausa para manter boas relações com a vizinhança)
Ele – Ok. Dizíamos…
O Outro – Desculpem lá.
Ela – É verdade que eles não fizeram muitas perguntas ao Zé mas depois eu estava a dizer que ele andou lá nos grupos.
O Outro – O que é que eu andei a fazer lá pelos grupos? Percebi algumas coisas, percebi por exemplo que conhecem pouco… alguns não conheciam o original do Moliére. Depois também percebi que já não me lembrava do original. Já não me lembrava mesmo nada. Quem era o pai quem era o filho, os nomes…
Ela – Eu, aconteceu-me que eu...
Ele – É fácil pensa no filme do Louis de Funès.
O Outro – O problema são os nomes das personagens. Como eu troquei os nomes às personagens o Anselmo já não é o Anselmo, o Valério ou o Varela não é o Valério, percebes? Aquilo já está tudo trocado na minha cabeça.
Ele – Pois, também na minha está, por isso é que eu vou sempre ao filme.
O Outro - O problema são os nomes!
Ela – Eu… eu não tinha lido o… o Moliére antes de ler o teu. Li o Moliére depois de ler o teu. E foi muita giro, porque de repente, de repente coisas que não eram muito claras… Por que é que tu optavas por determinadas soluções, quando li o Moliére clarificaram-se essas opções. Estás sempre a fazer o ponto e isso foi muita giro. Mas sim, é verdade há uns que não leram o… O Avarento.
O Outro – Ou não tinham ainda tido tempo para ler ou…
Ela – Ou não acabaram ou ba ba ba ba ba ba ba ba ba.
Ele – Ainda assim em relação aos materiais, para além do texto…
O Outro – Olha o que eu achei engraçado, eu que vim de fora, foi ver a malta ali durante uma hora, ali a ler coisas, não é? E pensei, estes gajos vão-se chatear aqui e… vão começar a… parecia que havia um ou outro que estava, o que é normal, a resistir um bocadinho, mas… mas, por exemplo a da Marina Abramovic, aquilo correu bem, porque a entrevista começa a ser divertida e tem, quer dizer, consegue ter assim um lado mais… eles iam-se divertindo ao mesmo tempo. Mas eu pensei que era muita coisa. Uma hora e tal só a ler, deitados no chão a ler, não é? E em inglês, ainda por cima. E depois fiquei espantado quando eles vão, começam a trabalhar e voltam para apresentar coisas, de repente: olha afinal… ahhhh…serviu para alguma coisa. Parece que estimulou qualquer coisa porque eles foram muito rápidos a aparecer com ideias.
Ela – Sim.
Ele – Sim, sim, sim.
Ela – Isso é verdade.
O Outro – Vocês devem ter-lhes dado uma ensaboadela…
Ela – Os dois primeiros dias foram um bocadinho dementes. Nós estávamos sempre a tentar controlarmo-nos um ao outro. O André dizia… acho que foi no primeiro dia de conversa que disse exactamente isto : nós já trabalhamos juntos há muito tempo, há materiais que já nos são muito familiares e já estamos muito codificados na maneira como falamos. Se um dispara e o outro dispara a seguir é demente…
O Outro – Pois é.
Ela – Temos de estar sempre a travar. Tanto que eu achei que no segundo dia quando lemos a entrevista dos “Mil Planaltos” do Deleuze que o Tomé… não aguentou, agarrou nas coisinhas dele e foi-se embora e eu pensei: não volta, pronto acabou-se. Mas voltou, é resistente.
Ele – Sim, porque os materiais não têm necessariamente a ver… outra vez e voltando à questão da Catarina, ela perguntava se os materiais eram sempre os mesmos independentemente dos textos. De alguma forma sim… porque… porque…ahhhh… porque aquilo não tem a ver com Moliére, mas sim com um entendimento do espaço criativo comtemporâneo, que eles ainda não têm... ahhhh… tem a ver com o nosso… com… com… não é só com a nossa ideia… com a nossa ideia de… de… de…
O Outro – De teatro
Ele – De teatro. Tem a ver com a Marina Abramovic, tem a ver com o Lars vom Trier, tens uma performer e tens um cineasta e tem a ver com um filosofo mas que também trabalha com um psicólogo ou psiquiatra… ahhh… portanto, tem a ver um bocado com o espírito do tempo, muito mais do que com Moliére… coisas que, por exemplo, “Os mil planaltos” são muito importantes… ele diz que tu não te podes esquecer de quem tu és e de quando tu vives. Tu vives interdisciplinarmente hoje em dia, portanto não podes negar.
O Outro – O que eu acho diferente entre os textos que vocês estão a dar e … e a questão que ela (a Catarina) colocou e, por exemplo, aquela reacção daquele rapaz o Tiago, no final, que diz que quer aplicar o Artaud ao Moliére mas também podia aplicar a outro qualquer, não me interessa. É perceber que há uma diferença entre vamos ler o Deleuze e agora vamos ler o Molière. O que é que isto significa. Não é aplicar o Deleuze ao Moliére…
Ele – De todo.
O Outro – Ou aplicar o Artaud ao Molière ou… É isto abre-nos uma série de ideias sobre…
Ela – Mas esse é o equivoco que eu acho que ainda há.
O Outro – E a pergunta dela eu acho que é preciso esclarecer, é preciso responder bem a essa pergunta, porque é uma boa pergunta. Eu achei logo que ela estava a tocar no nervo, porque isto pode criar um desentendimento. Pode-se facilmente cair no erro que o Tiago estava a cair.
Ele – Sim, sim, sim, sim. Sim porque não tem a ver com uma forma de concretização, não é, de todo, uma forma. É só uma tentativa de… por exemplo, uma coisa que nós falamos sempre que é…ahhh…a questão de ler um autor, se estamos a respeitar o autor ou não… E está lá na entrevista do Deleuze. Quer seja uma leitura antropológica, quer seja uma leitura altamente formal ou experimental, whatever that is, estás sempre a ler através da tua forma, nunca estás a ler sem seres tu. Por mais que tu aches que estás a respeitar o autor…
Ela – É o que TU achas que é respeitar o autor, por isso não há fuga possível.
Ele – E não tem a ver com uma forma de… de fazer o espectáculo, não é, de todo, tem a ver com uma consciência tua como artista no tempo onde tu vives. É muito mais isso.
O Outro – É mais abrangente.
Ele – Muito mais… e abre muito mais portas, apesar de parecer que te canaliza muito mais, abre muito mais portas.
Ela – E por isso é que também percebes a dificuldade que alguns têm em tomar decisões muito concretas quando se passa para a prática, apesar de eles virem carregados de ideias… o primeiro grupo do Diniz, da Yolanda e do Fábio, nisso foi muito feliz que acertaram lá numa zona fisgada e parece-me que são os que estão mais encaminhados, mas os outros o que tu sentes é que aquilo abre-lhes tantas possibilidades que eles não são capazes de escolher. Ainda. Ficam baralhados com tanta hipótese Ficam à toa quando têm de optar. Também a coisa de ninguém lhes dizer: agora fazes assim…
O Outro – Mas olha que eu nem em todos senti que havia uma apropriação dalguma coisa. Se calhar houve um ou outro grupo, não te sei dizer qual que senti que não aproveitaram nada, pelo menos por enquanto.
Ela – Ou que ainda não estão a conseguir articular bem os materiais todos que foram lançados para a mesa e que aquilo ainda está uma pápa.
O Outro – Mas também é absolutamente legitimo que eles cheguem à conclusão de que nada daquilo lhes interessa…
Ele – Obviamente.
Ela - Com certeza. Mas também essa foi uma conversa que tivemos com eles desde o início. Se eles decidirem que querem fazer uma apresentação absolutamente formal o nosso trabalho ali é dar-lhes os materiais para que isso seja possível de… de não ser uma coisa só porque sim. O gesto criativo não compreende uma ingenuidade..
Ele – A questão é que hoje em dia é impossível apresentares qualquer coisa sem a justificares, mesmo que a justificação seja, nós falamos sempre no caso de Jeff Wall, mesmo que a justificação seja não há justificação, cada um pode interpretar isto à sua maneira. Mas isso já é uma justificação em si… e também isso tem de ser aprofundado. Por que é que cada um pode ler à sua maneira? Não é só, ah cada um pode ler a sua maneira, tens de justificar porquê. Mesmo que não justifiques o trabalho. Como faz o Romeo Castellucci, de alguma forma. (Há um telefone que toca) Queres atender o telefone?
(Pausa para O Outro ir atender o telefone)
Ela - Mas eu também acho que não é fácil, chegas lá dão-te uma porrada de textos…
O Outro – Não é nada fácil. Mas deixa-me só pegar naquilo que vocês estavam a dizer… eu estava-me a lembrar de uma coisa que é, também não nos podemos esquecer que o workshop é dado pelos Praga e há uma linha, naturalmente… ou não? Vocês dizem. Ah eles podem pegar no Molière e fazer o que quiserem….
Ele – A única linha que tu tens, e podes dizer que é a linha da Praga é TENS DE JUSTIFICAR CADA COISA QUE FAZES… mesmo que seja uma ausência de justificação.
O Outro – Sim mas um Workshop dado pelos Praga ou um Workshop dado por, sei lá pelos Artistas Unidos ou por… pela Cornucópia é diferente, ou não é?
Ele – Não sei o que é porque nunca fiz nenhum com os outros.
O Outro – Eu também não sei porque nunca vi workshops. É uma questão que vos faço não sei se…
Ela – Sim mas eu acho que isso é uma falsa questão…
O Outro – Vocês dizem: ah eles fazem o que quiserem, eles fazem o que quiserem mas não é bem assim. Vocês não são inocentes!
Ele – Eles fazem o que quiserem mediante uma plataforma de entendimento.
O Outro – Vocês são, no fundo, orientadores do Workshop e vocês não são… não é que não tenham identidade, vocês têm uma identidade.
Ele – Mas só passa por isso, eu estou-me a cagar se tu fazes aquilo com uns figurinos de época, tem é de me ser justificado. Não pode ser só porque o Piccolo Teatro di Milano faz… não pode ser isso, não é suficiente…
Ela – E nesse sentido quando entregamos aqueles textos estamos a salvaguardar o espaço da nossa identidade. São textos que circulam entre nós, aos quais nós recorremos…
O Outro – Mas se têm um discurso de: não, nós só estamos aqui para fazer perguntas, eu acho que não é assim tão inocente.
Ele – Claro que não é inocente!
Ela – Não é inocente de todo!
O Outro – Vocês não são assim tão inocentes. Vocês estão a apresentar uma série de textos…
Ele – Os textos também não são inocentes.
O Outro - Estão a apresentar-se como Praga, mostraram os vossos espectáculos e não sei quê… Está-se a criar uma linha… está-se a mostrar qualquer coisa, os vídeos que vão mostrar não são do espectáculo do Strehler. Isso não é nada inocente:
Ele – Sim, mas podiam ser vídeos de outras companhias. Se eu tivesse acesso a vídeos que eu achasse interessantes.
O Outro – Interessantes para ti?
Ele – Claro. Para mim e para a Cláudia neste caso. A Praga não tem um desejo único tem 10 mil desejos diferentes.
O Outro – Mas isso também é uma ideia. Isso também é uma identidade.
Ele – Obviamente!
Ela – Pois é!
Ele – Mas uma identidade absolutamente aberta.
O Outro – Mas quando vocês decidem: agora divido-os em grupos e não dirijo aqui ninguém, só faço perguntas. É completamente diferente de um workshop onde há um encenador que diz: tu vais fazer assim, tu assim…
Ele – Há uma linha sim, mas é uma linha muito mais aberta. Não é uma linha fechada. É uma linha aberta onde cada um pode fazer aquilo que quiser. Obviamente mediante, também, as nossas questões e o que nós achamos que é fundamental para eles como futuros agentes criadores…ahhhhh… ahhhhh… não basta fazer, não basta fazer, vão ser aniquilados logo à partida… porque se não tens um discurso…
O Outro – Pois, pois, pois… Eu acho que uma das mais valias que vocês podem ter, no trabalho com eles, é precisamente, a ideia de, vocês são um grupo de quatro pessoas ou três ou o que for e vão ter de trabalhar juntos e não há aqui ninguém que seja mais forte…
Ele - Exactamente.
O Outro – Porque naquele grupo, por exemplo dos quatro sentia-se que havia um que estava a puxar mais p’ra ele…
Ele – Pois, pois.
Ela – Mas por isso é que nós dizíamos: tu se tens uma ideia tão concreta, sabes tão bem o que queres, se calhar mais vale fazeres sozinho…
Ele – Mas nesse sentido sim, não é , de todo, a nossa linha porque nós somos absolutamente comunitários. Não há ninguém que mande os outros fazer. Isso não existe.
O Outro – Sim, mas não passa pela tua cabeça fazer um espectáculo… fazeres o TEU espectáculo?
Ele – Mas eu faço! Ela faz! Fazemos, quando queremos fazemos. Eu vou encenar uma ópera sozinho. Eu já fiz monólogos sozinho, não pus ninguém lá em co-criação.
O Outro – Por isso é que se o outro rapaz disser: eu quero fazer sozinho, também é válido.
Ele – Mas então, se calhar, está no sitio errado porque o nosso propósito ali é trabalhar sobre o Molière e trabalhar em conjunto sobre o Molière.
O Outro – Ah, pronto:
Ele – Não é… não é ensinar a ser encenador, isso é o que a escola deve fazer, mostrar-te várias linhas de trabalho e ensinar-te a ser encenador. O que nós estamos ali a fazer é um trabalho anterior a isso, que é, ok, queremos lutar, de alguma forma contra essa figura tutelar, embora individualmente cada um o saiba fazer, mas… mas queremos fazer um trabalho em conjunto com pessoas.
Ela – Por isso é que eu acho que, agora, a coisa vai ficar cada vez mais dura. À medida que as ideias vão avançando e que eles vão ficando, cada um deles, mais seguros e afirmativos no que querem, o nível de negociação com os outros e até connosco vais ser mais duro, mais difícil. Mas essa dificuldade faz parte exactamente deste processo, também aprenderes a fazer cedências quando estás com um grupo … e os outros, também a ceder e arranjar ali uma plataforma que seja comum.
Ele – Ou então o contrário, teimar, teimar, teimar até os outros se sentirem apaixonados pela tua ideia.
Ela – Seja por exaustão, seja por desistência do outro é defenderes a tua ideia... nós costumamos dizer, um bocadinho na brincadeira um bocadinho a sério, que vamos para a guerra. Ou seja tens ali o teu material e agora vais partir a cabeça a toda a gente para que o teu material seja aceite, ou então vais perceber: olha afinal há uma ideia mais interessante que a minha. Também é importante não haver pudores em desistir de uma ideia, não ficar a teimar só porque a ideia é tua… se alguém chega com uma ideia mais interessante que a tua é importante saberes desistir da tua em prol da outra…
Ele – Isto também serve para nós, não é um workshop só para eles. Serve para aprendermos, revermos coisas, reformularmo-nos, termos novas informações. É como o Pacheco Pereira, sair da esquerda e ir para a direita. Fazer de espião.
O Outro – Foi uma das razões por que eu quis lá ir… para me obrigar a falar um bocadinho sobre… para começar a entrar outra vez, estou há um tempo distanciado do texto. Agora vamos começar a entrar nisto… começar a articular coisas e a explicar olha eu fiz isto por isto…
Ela – Sim. Depois coisas que nós internamente já… já tomamos como garantidas, já nem sequer justificamos isso, internamente, uns com os outros. E nem pensamos muito sobre a coisa, de repente ali, és confrontado com a pergunta: desculpa eu não estou a perceber, mas isso porquê? e obriga-te e esse exercício de revisão da matéria dada.
O Outro – Bem, mudamos de tema? Há mais temas?
Ela – Eu fiquei preocupada com o Tiago ontem… porque… não sei, acho que devíamos falar com ele… pá porque, não sei … para esclarecermos que ninguém está contra ninguém. É só trabalho. Isso também é uma coisa que é difícil de compreender, porque às vezes as discussões ficam muito acesas…
O Outro – Mas é preciso questionar, é preciso…
Ela – Claro que é!!!! Mas também é preciso esclarecer muito bem que a coisa não é pessoal, é discussão de ideias de trabalho.
Ele – E quando te propões estar ali, propões-te a isso.
Ela – Era como dizias no outro dia: uma coisa é saber que se conversa muito, outra coisa é sofrer a conversa. Conversar muito implica também entrar em desacordo profundo e em choque profundo.
Ele – Ficamos por aqui hoje. 3, 2, 1. Varanda de Benfica à vista o British Hospital, o BPI , a Galp e a 2ª Circular…………………………… |